Zezé Motta: 'Quem sofre racismo não pode engolir sapo. Tem que denunciar'
"Enquanto o coração bater, vou me apaixonar, me envolver. Eu quero é viver!", diz a atriz e cantora Zezé Motta, 77 anos recém-completados e imunizada com as duas doses da vacina contra a covid-19.
No ano passado, ela teve covid-19 assintomática, seu irmão ficou hospitalizado durante 20 dias e um primo morreu por causa do vírus. A população negra, estudos recentes indicam, tem sido a mais afetada pelo coronavírus em algumas áreas, e com menores índices de vacinação.
"O que a gente espera de um país que é governado por um genocida, né? Que nem sequer está preocupado com a situação da vacina", afirma Zezé, em entrevista por telefone a Universa.
De volta ao trabalho tomando todas as precauções, a atriz acaba de filmar o longa "As Bisnetas", de Marco Cavallaria, e está confirmada no elenco de duas séries da Globo: em "Fim", inspirada no livro de Fernanda Torres, e na segunda temporada de "Arcanjo Renegado".
Neste domingo, 25 de julho, data em que se celebra o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, vai ao ar um especial gravado recentemente: "Zezé Motta - Mulher Negra". O show, que será transmitido no canal pago L!ke (Net Claro) e no canal do Teatro Bradesco no YouTube, homenageia a líder quilombola Tereza de Benguela, ícone da resistência negra no Brasil do século 18, e conta com depoimentos da cantora Iza, da escritora Conceição Evaristo, da filósofa Djamila Ribeiro e da ex-BBB Camilla de Lucas, entre outras.
"Acho interessante ter esse dia dedicado à mulher negra, porque ela é muito importante, principalmente na nossa cultura em que as negras amamentavam os filhos das mulheres brancas. É sempre importante dar destaque para causas da mulher porque são elas que realmente põem as pessoas no mundo", diz a Universa, em entrevista por telefone.
Com mais de 50 anos de carreira e uma das principais vozes do movimento negro no país, Zezé diz que não tem o trabalho de analisar personagens que possam ser estereotipados. "Já sabem que não é para me convidar", fala.
Mas não quer dizer que eu não vá fazer uma trabalhadora doméstica. Claro que posso fazer, desde que esse personagem faça parte da trama. Que não seja um convite para abrir porta, fechar porta, servir cafezinho e dizer 'Sim senhor, sim senhora'.
Zezé, que atualmente está em cartaz nos cinemas com "4x100 - Correndo por Um Sonho", de Tomás Portella, e "Doutor Gama", cinebiografia de Luiz Gama de Jeferson De, diz ser "vergonhoso" que um país tão miscigenado como o Brasil precise criar uma lei de cotas "para dar espaço a artistas negros, um espaço que lhes é de direito".
Leia a seguir a entrevista:
Universa: Como foi gravar o especial "Zezé Motta - Mulher Negra" para celebrar o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha neste domingo?
Zezé Motta: Acho interessante ter esse dia dedicado à mulher negra, porque ela é muito importante, principalmente na nossa cultura em que as negras amamentavam os filhos das mulheres brancas. É sempre importante dar destaque para causas das mulheres porque são elas que realmente põem as pessoas no mundo — por mais que tenha o pai também, são elas que se ocupam mais com os filhos, que têm dupla jornada.
Vou cantar com a Malía, fiquei bem encantada com o nosso ensaio. E a nossa diretora, Yasmin Thayná, também é negra, então nós 'tamo que tamo' [risos]. E vamos homenagear a Tereza de Benguela. Eu adoro participar desses projetos, tô animada!
Você fez parte do Movimento Negro Unificado e é um grande nome na militância negra no país. Quais as maiores diferenças da militância nas décadas de 70 e 80 para a de agora?
Logo no início do Movimento Negro nós tínhamos reuniões frequentes, semanais, e todo final de semana a gente se reunia para traçar estratégias de combate ao racismo e à discriminação e também estratégias de conquistas dos espaços. Como diz o ator Milton Gonçalves, nós somos negros em movimento.
As pessoas da minha geração que participaram da fundação do Movimento aproveitam o espaço que temos na mídia, os contatos do dia a dia, e, quando acontece algo grave, a gente está sempre denunciando, insistindo que quem pratica o racismo seja punido. Um dos avanços que teve e que eu não vejo muito ser cumprido foi a Lei Caó [que, em 1989, transformou o racismo em crime]. O que não podemos deixar é de bater na tecla de que cada pessoa discriminada tem que reagir. Quem sofre racismo não pode engolir sapo, tem que denunciar.
Acha que a mídia tem representado bem a negritude e a terceira idade?
Com 54 anos de carreira, acho que mudou a representação na mídia. Quando eu estava em cena, não tinha espaço para meus avós; quando a Ruth de Souza (1921-2019) estava em cena, não tinha lugar para a Chica Xavier (1932-2020). Então já houve algumas mudanças. Existe até uma lei há alguns anos que exige, no mínimo, 20% de negros em cada produção de cinema, de teatro. É vergonhoso, num país tão miscigenado, ser preciso criar uma lei para dar espaço a um artista negro, um espaço que lhe é de direito. Eu sei que as coisas mudaram um pouco, mas ainda temos muita luta pela frente.
Você só vê um número expressivo de negros em qualquer desses veículos quando o tema é escravidão. E não é verdade que todo negro na vida real é subalterno. Nós temos cantores, atores, compositores, médicos, arquitetos.
E na escolha dos papéis você dá preferência para personagens que quebram estereótipos tanto relacionados à terceira idade quanto à população negra?
Eu como sou militante, nem tenho mais o trabalho de selecionar, porque eles já sabem que não é para me convidar.
Mas não quer dizer que eu não vá fazer uma empregada doméstica. Claro que posso fazer, desde que esse personagem faça parte da trama. Que não seja um convite para abrir porta, fechar porta, servir cafezinho e dizer 'Sim senhor, sim senhora'. Qualquer outro personagem, motorista, enfermeira, o problema não é com o personagem, mas com a questão do personagem viver em volta dos personagens brancos. Daí a realmente a resposta é 'não'.
Um estudo do LabCidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade) da USP (Universidade de São Paulo) apontou que a vacinação contra a covid-19 privilegiou a população branca e de maior poder aquisitivo em SP. Já levantamento do Instituto Polis diz que negros são os que mais morrem de covid no país. Como falar de saúde pública e racismo quando o próprio governo nos negligencia?
O que a gente espera de um país que é governado por um genocida, né? Que nem sequer está preocupado com a situação da vacina. Estamos vivendo um momento muito triste no país, e acho que todo mundo tem que refletir bem nas próximas eleições.
[Sobre a população negra afetada pela Covid-19] Deve ter a ver a questão sanitária precária, pode ter a ver com falta de informação ou ficar mais exposto porque não pode deixar de sair para prover sua subsistência, dependendo da situação financeira.
A questão racial tem tantas coisas para serem discutidas, mas uma das denúncias que a gente pode fazer é que existe uma doença chamada anemia falciforme que é incidente nos negros e quase ninguém tem essa informação. Não há campanhas alertando famílias. É muito triste que ninguém esteja interessado nisso.
Você interpretou mulheres ícones da resistência negra como Dandara, Xica da Silva. Quais outros nomes femininos do movimento negro nacional as pessoas precisam conhecer, resgatar?
A historiadora Beatriz Nascimento, a [antropóloga] Lélia Gonzalez, que conheci por meio de um curso de cultura negra, as artistas Ruth de Souza, Chica Xavier, Léa Garcia e Luiza Maranhão. Como militante, minha principal inspiração foi Lélia. Quando as coisas começaram a dar certo para mim, quando já dava muitas entrevistas, me perguntavam para mim sobre a questão do negro. Eu tinha vontade de falar sobre isso, mas eu não tinha um discurso articulado. Não estava preparada. Depois que participei do curso da Lélia, ficou bem mais fácil participar da luta.
Estou animada, sou bem otimista, de bem com a vida! Tô vivendo uma história platônica, esperando o Carnaval passar [risos]. Estou com 77 anos, as pessoas pensam que com essa idade a sexualidade não existe mais, o desejo acaba, mas não. Eu sou a prova viva que não é assim que a banda toca! Enquanto o coração bater, eu vou me apaixonar, eu vou me envolver, eu quero é viver!
Como foi voltar a trabalhar na pandemia? Sentia que precisava fazer coisas senão ia enlouquecer dentro de casa?
Eu não paro. Fiquei inventando um monte de coisa, voltei a fazer aula de piano, fiz análise e faço até hoje. Estou lendo muito, tô com uma pilha de livros aqui do lado. Estou lendo agora 'Amores Improváveis' (ed. Globo Livros), de Edney Silvestre, e acabei de ler o livro da Ludmilla. Tô vendo filmes, enfim. A gente está tendo que se reinventar.
No ano passado, você reestreou o show "Zezé Canta Caetano", dos anos 1990. O que mais te marcou no show original e agora no novo?
Eu tinha feito uma vez só e fiquei muito emocionada com o show recente, porque foi em plena pandemia e pude sair de casa para pisar no palco, esse lugar sagrado, e cantar. Foi muito emocionante e ao mesmo tempo tinha aquele aperto no coração também de não ter uma plateia lotada, porque tinha que ser com um número bem reduzido de pessoas e com uma distância de 5 metros do palco. Então foi uma experiência bem diferente. Espero que quando passar tudo isso eu possa fazer uma temporada desse show.
Qual é sua relação com o público mais jovem hoje em dia?
Eu tenho orgulho de dizer que eu transito por todas as faixas etárias. A novela facilita muito isso, para que todas as faixas etárias saibam que eu existo e acompanhem o meu trabalho. O que acontece quando pessoas mais jovens vão ao teatro é que elas se surpreendem: 'Ah, Zezé, eu nem sabia que você cantava!' [risos].
O especial "Zezé Motta - Mulher Negra" será transmitido neste domingo (25), a partir das 17h30, pelo canal pago L!Ke (530 da Claro - 500 da Claro NET) e pelo canal oficial do Teatro Bradesco no YouTube.
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