'Sou médico trans e recebi 1ª identidade com sexo não-binário da Argentina'
"Eu sou um mais eu do que nunca, mas até agora ninguém entendia o que eu era: uma pessoa trans.
Carolina é parte do nome que me deram quando nasci, mas como eu tenho uma imagem masculina, tinha que dar explicações toda hora. Não me percebo nem como masculino nem como feminino, sinto que não tenho um gênero estabelecido e para falar de mim, utilizo pronomes masculinos, femininos e neutros.
Quando eu estava pensando em um novo nome para retificar minha certidão de nascimento, fui comprar um café e escreveram Gerónimo no copo. Acho esse nome lindo, e tem aquela história de gritar Gerónimo ao se jogar no vazio. Meu pai se chama Gerardo e ficaríamos com as mesmas iniciais, então decidi mudar meu nome de María Carolina para Gerónimo Carolina.
Sou de Mendoza, uma das províncias mais conservadoras da Argentina. Nasci em 1986, era outra época, e em uma família heteronormativa. Lembro de, quando pequena, ver meu pai indo caçar ou pescar com os meninos e eu não poder, e ao mesmo tempo um primo da minha idade, que é gay, chorava porque o obrigavam a ir, e ele não queria.
Na minha infância e adolescência, sempre que podia me vestia como menino. Perdi vários momentos familiares, casamentos, por não querer usar a roupa que a sociedade dizia que eu deveria usar. Eu queria usar terno. Para mim vestido era uma tortura, eu me sentia vunerável, era me ver como alguém que eu não era, lembro que me trocava várias vezes e não conseguia me sentir confortável.
Minha adolescência foi difícil, porque minha sexualidade começou a explodir e eu não entendia o que estava acontecendo. Acho que sempre fui a mesma pessoa, mas que precisava de informação para poder me expressar e me entender. Sempre fui apaixonada por questões relacionadas a sexualidade e anatomia, por isso acabei estudando medicina.
Minha primeira saída do armário foi como lésbica, em 2007, como orientação sexual. Depois também comecei a viver isso como uma identidade de gênero. Quando consegui mais informação e me senti mais confiante, comecei a me hormonizar, para parecer mais como um homem, que é minha expressão de gênero. Antes eu não me identificava como não-binárie*, porque essa expressão nem era usada ainda.
Minha mãe, minha avó e minha irmã se preocupavam comigo, mas sempre me apoiaram. Na minha transição hormonal e quando decidi fazer cirurgia para extrair as mamas e masculinizar os peitorais, conversei muito com elas, sentei com cada um da minha família. Conforme eu ia avançando, elas faziam perguntas, tinham dúvidas que eu também tinha. Então eu pesquisava e ia entendendo meu próprio processo. Foi assim que cheguei a essa definição de não-binárie e, neste momento, também de queer.
Hoje eu sou quem queria ser desde pequeno, e quando consegui me definir, comecei a averiguar a possibilidade disso estar refletido nos meus documentos. Em 2012, a Argentina aprovou a Lei de Identidade de Gênero, que diz que a identidade de gênero é definida por como cada um se autoperceba. Eu me defino como não-binárie, mas é algo que também pode mudar, então quando fui pedir a mudança da minha certidão, em 2018, não coloquei nada no campo sexo/gênero e adicionei, no formulário, esse artigo da lei que respaldava meu pedido.
Naquele ano, minha certidão de nascimento foi a primeira do país a ser retificada fora do binômio de uma pessoa endosex, ou seja, de uma pessoa que não é intersex [nascida com anatomia reprodutiva ou sexual que não se enquadra nos padrões do sistema binário de masculino e feminino]. A certidão foi emitida com uma linha no espaço do sexo/ gênero, foi uma grande notícia.
Para chegar até isso tive o privilégio de contar com pessoas muito capacitadas e envolvidas com essas questões, como a Eleonora Lamm, doutora em Direito e Bioética que atuava na subdiretoria de Direitos Humanos e Acesso à Justiça da Suprema Corte de Mendoza e participou da redação da Lei de Identidade de Gênero, de 2012. O problema é que tinha parado por aí, porque alguns dias depois pedimos a retificação do documento de identidade, e o Registro Nacional de Pessoas, sob a administração anterior, acabou negando.
Desde então, minha certidão estava com um nome e minha cédula de identidade com outro, e em processo de mudança. Ou seja, eu estava indocumentada. Por mais que seja complicado ter que ficar explicando quem sou, porque meu nome e gênero não correspondiam à minha aparência, eu tive sorte - na verdade, muitos privilégios -, e não acabei sendo presa, como aconteceu com outras pessoas do coletivo.
Minha cédula estava com um F de feminino, que foi meu gênero imposto ao nascer, e eu não queria mudar meu documento para masculino porque não me identifico como homem, e tenho uma luta transfeminista muito importante na minha vida. Agora, desde a semana passada, aparece o X, que é qualquer identidade diferente de F ou M.
Entendo quem não está de acordo com o uso da letra X, e não é que agora vou abaixar as bandeiras e a luta acabou, mas agora vamos poder demonstrar que estamos dentro da lei. Meu plano de saúde, por exemplo, colocava poréns para eu fazer cirurgia de transição. Apesar de a lei de 2012 estabelecer que temos esse direito, pediam que um clínico ou um psicólogo corroborasse que eu sou trans. Sempre é uma luta para quem quer tomar hormônios ou fazer alguma modificação no corpo.
Sou médico e trabalho em um hospital de San Martín, em Mendoza, com interrupções voluntárias da gravidez, e sei que, assim como a educação sexual, apesar de existir uma lei, há lugares que ainda não se implementam totalmente, então é preciso muito trabalho para isso não ficar na teoria. E o documento de identidade não-binário é um passo, vamos aos poucos crescendo como população em geral e adaptando as documentações a esta mudança.
Agora com essa notícia muita gente vai saber o que é ser não-binárie, e que é algo que o governo está apoiando. Geralmente as pessoas que não estão em contato com isso não têm ideia do que significa e às vezes a ansiedade me mata, porque penso que não vou ao banco, porque não vão me deixar entrar, porque vão me dizer alguma coisa em voz alta, que as pessoas vão me olhar.
Aqui questionaram muito sobre em que idade nós iremos nos aposentar. Mas as pessoas trans têm uma perspectiva de vida de 40, 45 anos, por várias razões, entre elas a dificuldade do acesso à saúde. E não tem saúde sem identidade, muitas não vão ao hospital por não saberem como serão tratadas. Então vamos nos preocupar com a idade da aposentadoria quando chegarmos lá, porque até agora não foram muitas as que chegaram nessa idade e as que chegaram são sobreviventes. Nós sobrevivemos."
*Gerónimo Carolina Gonzalez, 34, é médico e vive em Mendoza, na Argentina; Na entrevista, pediu para que fosse mantido em seu depoimento a linguagem 'neutra', sem uso de pronomes masculinos ou femininos.
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