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À espera do STF, Justiça dá só 'licença-paternidade' a mãe em casal lésbico

A analista judiciária Flávia* é servidora da Justiça Federal do Paraná - Arquivo pessoal
A analista judiciária Flávia* é servidora da Justiça Federal do Paraná Imagem: Arquivo pessoal

Vivian Faria

Colaboração para Universa, de Curitiba (PR)

29/07/2021 04h00

Dois meses após o nascimento da filha, a analista judiciária Flávia* ainda não pode desfrutar de uma licença para se dedicar aos cuidados do bebê e fortalecer o vínculo com ela. Homossexual e casada com uma trabalhadora autônoma, a mãe não gestante da criança precisou recorrer à mesma Justiça na qual trabalha para ter direito a uma licença parental.

Só conseguiu o direito com decisão recente do (TRF-4) Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que, além de não ser o que Flávia esperava, foi no sentido contrário do entendimento do tema por outros tribunais e juízes, inclusive do ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Luiz Fux ao relatar caso semelhante e reconhecer que ele deveria ser de repercussão geral.

Flávia é servidora da Justiça Federal do Paraná e prefere não divulgar outras informações sobre si e sua família para garantir a privacidade e evitar ataques de ódio. Ela conta que, após a confirmação da gestação da companheira, decorrente de uma inseminação artificial feita em agosto de 2020, não imaginou que enfrentaria problemas para usufruir de um benefício garantido a todos os pais.

"Para mim, era óbvio que pelo menos uma licença análoga à paternidade sairia automaticamente. No início do ano, fiz um requerimento administrativo genérico, pedindo licença-maternidade ou semelhante e, para minha surpresa, ele foi indeferido e eu fiquei muito frustrada", diz. A justificativa foi de que, no caso da mãe não gestante de criança fruto de união homoafetiva, não havia previsão normativa para concessão de licença parental.

A saída foi pedir a licença na Justiça. Como sua companheira é autônoma, a analista judiciária pediu à Justiça uma licença-maternidade de 120 dias, prorrogáveis por mais 60. Como alternativa, sugeriu a concessão de benefício análogo à licença-paternidade com duração de até 20 dias.

A decisão em primeiro grau, que ficou a cargo da 6ª Vara Federal de Curitiba, considerou o trabalho da mãe gestante e concedeu, em caráter liminar, a licença-maternidade a Flavia. Mas a União recorreu, alegando que a decisão feria o princípio da isonomia por garantir duas licenças-maternidade ao mesmo núcleo familiar e que a licença-maternidade deveria ser garantida à gestante, pois se refere a um período de recuperação em razão das mudanças físicas e psicológicas decorrentes da gestação.

Os argumentos foram acolhidos pela relatora do caso na segunda instância, a desembargadora federal Marga Inge Barth Tessler, que votou pela alteração do benefício para uma licença análoga à concedida aos pais, ou seja, com duração de 5 dias prorrogáveis por mais 15 - decisão acatada pela maioria da 3ª Turma do TRF-4 em votação no dia 13 de julho.

Argumentos

Usando a expressão "opção sexual", já superada pelo entendimento de que as pessoas não escolhem sua orientação sexual, a juíza Tessler justificou o voto afirmando que não há lei específica regulamentando a concessão de licenças parentais para casais homoafetivos. Por isso, são interpretações análogas da legislação para um relacionamento heteroafetivo que garantem os mesmos direitos todos os casais.

Pelo parâmetro da isonomia e não pelo fato de ser mulher, [a mãe não gestante] não tem como ser guindada ao status da companheira, que levou a cabo a gestação e o parto
Marga Inge Barth Tessler, desembargadora federal do TRF-4

Ela defendeu ainda que "somente a [mãe] que exerceu a maternidade em sua plenitude deveria ser merecedora da licença-maternidade" e apresentou um caso julgado pelo mesmo tribunal em 2020 como precedente. Na ocasião, uma licença análoga à paternidade foi concedida a uma servidora pública que era mãe não gestante de uma criança fruto de união homoafetiva. Este caso, porém, envolvia duas servidoras públicas, e a decisão se baseou no fato de que a mãe gestante já havia usufruído da licença-maternidade. A companheira de Flavia não recebeu o benefício por não ter vínculo empregatício.

Causou estranheza a fundamentação da decisão. O que forma o vínculo da maternidade não é necessariamente o aspecto biológico ou gestacional, não é esse o foco da licença. A licença é muito mais para benefício da própria criança, para preservá-la e promover a integração familiar, do que para recuperar a gestante do parto
Ana Paula Vasconcelos, advogada, mestre em direito pela PUC-PR e atuante nas áreas de direito das famílias e LGBTQIA+

A advogada, que atua na defesa de Flavia, questiona também a associação ao caso de 2020 com o de sua cliente. "No caso da Flavia, não há duas licenças para o mesmo núcleo familiar", diz. Ela diz ainda que outros tribunais já decidiram conceder licença-maternidade à mãe não gestante e um dos casos levou o STF a reconhecer que a matéria tem repercussão geral em outubro de 2019.

Licença generificada

O caso com repercussão geral reconhecida e ainda sob análise pelo STF foi uma decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para que uma servidora pública, que se tornou mãe não gestante, usufruísse da licença maternidade, já que sua companheira, autônoma, não o fez.

Na decisão em que reconhece a relevância social da matéria, o ministro Luiz Fux afirmou que a titularidade da licença-maternidade "ostenta uma dimensão plural", não podendo mais ser "fundada exclusivamente na recuperação da mulher após o parto". Ele diz ainda que o reconhecimento da condição de mãe à mulher não gestante em união homoafetiva "tem o condão de fortalecer o direito à igualdade material" e de mostrar "o respeito estatal às diversas escolhas de vida e configurações familiares existentes".

Para a presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/PR, Ananda Puchta, algumas decisões até recorrem aos argumentos de Fux e outras chegam a conceder dupla licença-maternidade para casais homoafetivos que desejam dividir a tarefa de amamentar o bebê. Ainda assim, há uma lacuna nas discussões sobre licenças parentais porque a legislação é voltada a casais heteroafetivos e aplicada apenas analogamente às uniões homoafetivas, além de atribuir o benefício ao gênero.

Ainda falamos de licenças através do gênero, não sobre licenças parentais, o que é um retrocesso. Não permite que haja mais configurações familiares. Falta ao aparato estatal reconhecer a importância da proteção familiar à criança independentemente do gênero da pessoa será responsável por cuidar dela nesse período
Ananda Puchta, presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/PR

Conforme ela, a superação do machismo estrutural que se revela nessa questão depende de um debate profundo sobre questões de gênero, o que é tabu no âmbito legislativo e vai contra o crescente movimento conservador verificado no país.