Ela largou o direito para virar mestre de obras após morte do pai pedreiro
"Meu pai sempre foi pedreiro, virou mestre de obras e depois passou a fazer casas para vender como pessoa física, por conta própria, sem uma construtora. Enquanto isso, eu fiz faculdade de direito e me preparava para concursos públicos.
Mas, em 2009, tudo mudou quando meu pai morreu de câncer. E, quatro meses depois, meu único irmão perdeu a vida em um acidente de trânsito. Eu fiquei em uma situação de questionamento. Quem iria sustentar a família, já que meu irmão estava tocando as obras.
Ao ver que existiam ainda três casas para ser construídas, todas com somente um metro de tijolo assentado, me vi na condição de aprender na prática para continuar com os empreendimentos. Se tivesse ficado uma aposentadoria ou pensão para a minha mãe, não teria encarado as obras. Só que ela nunca trabalhou para poder se dedicar à família, meu pai não recolhia o INSS e não deixou herança. Ele construía para vender, mas não era uma construtora, tanto que colocava a mão na massa.
Com esse desafio na minha frente, decidi ir para o canteiro de obras todos os dias terminar as casas. Não sabia nada no início, tanto que chegava lá de bermuda e chinelos.
Percebi depois que estava toda errada, precisava de uma roupa específica. Era compreensível porque eu não visitava as obras do meu pai. Não era algo que convivia diariamente.
Decidi, desde o início, que nunca colocaria a mão na massa na massa literalmente. O que eu fiz para concluir os serviços? Usei a experiência como gerente de uma academia para fazer a gestão da obra. Lembro que no começo ficava muito tempo no canteiro porque acredito ser algo fundamental. Como que eu iria coordenar alguma coisa que nem sabia como funciona?
Entendi que para administrar uma obra, não preciso fazê-la, mas saber como é realizada. Ficava o dia todo no canteiro observando. Sempre tive um olhar muito atento, fuçava, pesquisava com amigos do meu pai, olhava na internet e via alguma coisa ali ou aqui para incorporar ao conhecimento do negócio.
Mudança de rumo na carreira
Entre 2009 e 2013 eu trabalhei como meu pai fazia. Construía casas e revendia, mas após os prejuízos, ao ponto de vender os imóveis a preço de custo, descobri um novo mercado na construção.
Soube por uma pessoa próxima que tinha alguém na cidade que administrava obras para terceiros. Lá atrás encarei o desafio de entrar no canteiro de obras e empreender nesse mercado. Aprendi a duras penas, passei por muito perrengue, tive vontade de desistir e agarrei essa brecha que o mercado me proporcionou: administrar uma obra para terceiro. Não poderia deixar passar e errar.
Tinha receio e medo, mas quando não se tem experiência, deve se manter a humildade e buscar o conhecido com pessoas mais experientes. Foi o que fiz e hoje sou uma administradora de obras. Na legislação, sou mestre de obras, mas digo que 'gourmet', porque acrescento outros serviços e toco construções de alto padrão.
Eu precisaria entender o que o ajudante fazia, fui lá e aprendi. Busquei conhecer o que o pedreiro fazia, aprendi. Enquanto isso, eu lia, estudava na internet, me aprofundava sobre produtos e consumi muito conteúdo, além de me apoiar em pessoas que sabiam muito mais que eu.
Fiz a minha condição de mulher ser um diferencial. Tem gente que entrega um trabalho semelhante ao meu? Até que sim, mas o meu diferencial é o olhar feminino detalhista. Transformei em vantagem o que, em tese, seria uma desvantagem.
Eu não estou pegando o lugar de ninguém. O dono do hospital precisa ser médico? Não. A teoria é fundamental. Não se forma engenheiro civil ou arquiteto sem faculdade, mas no caso do mestre de obras é na prática.
De inexperiente no canteiro a sucesso na internet
Em 2017, que precisava aparecer para surgir mais clientes e lancei um perfil no Instagram para mostrar meu portfólio.
Comecei a receber muitos feedbacks de mulheres que se identificavam comigo, faziam arquitetura, mas tinham receio de não serem respeitadas por serem mulheres. Naquele momento, me dei conta que nunca parei para pensar no preconceito.
Só quando o perfil começou a crescer é que lembrei de frases que ouvi nesse tempo.
Recordei que um concorrente comentou que eu não sabia assentar um tijolo e estava angariando as obras da cidade toda.
Me dei conta de preconceito quando essas seguidoras citaram. Foi quando caiu a minha ficha de que também sofri isso.
No Instagram, compartilho meu dia a dia nas obras e dicas de como executá-las. É um canal criado depois de mais de cem obras administradas nesses anos, entre reformas, construções de casas e pontos comerciais.
E agora eu ensino quem deseja executar uma obra ou profissionais que ainda não lidaram com a prática. A ideia do curso surgiu em 2019 e já capacitei mais de 200 alunos.
Tive o feedback de três públicos. Das mulheres falando que é possível estar dentro de um canteiro de obras, de pessoas que estavam aprendendo comigo ou estavam ajudando muito em relação à prática e de recém-formados que perderam o receio da prática, o que é compreensível porque qualquer erro que acontecer é algo muito caro. Eu mesmo já errei e paguei do meu bolso, mas caí e levantei inúmeras vezes.
A questão de ser mulher não tem nada a ver com incapacidade para esse mercado. Eu e inúmeras outras mulheres somos a prova disso. Contra a capacidade, nenhum preconceito permanece. A pessoa pode até falar algo, mas se mostrar competência, nada prevalecerá contra."
*Sandra Valentin, de 41 anos, é mestre de obras e vive em Governador Valadares (MG)
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