Movimento mostra que mulheres têm pelo e ganha força na pandemia
Em 1999, Julia Roberts foi vista desfilando por um tapete vermelho com um vestido sem mangas e, embaixo dos braços, pelos por depilar. A imagem chocou e entrou para a história da cultura pop. Mais de 20 anos depois, os pelos corporais ainda são vistos com espanto, mas as coisas estão mudando: uma em cada quatro mulheres abaixo dos 25 anos já não depilam o sovaco, de acordo com a consultoria de análise de mercado Mintel. Muito diferente dos números de 2013, quando a empresa registrou que apenas uma a cada 20 garotas deixavam a depilação de lado.
A tendência é uma expansão do movimento body positivity, que prega a aceitação dos corpos para além dos padrões de beleza. E não à toa ganhou o nome de body hair positivity, já que visa normalizar os pelos corporais no corpo das mulheres. Não só os dos braços e das pernas, como os da região genital e do rosto, como o buço. E, com a pandemia, esse movimento tem ganhado ainda mais força.
Deixar os pelos crescerem, é claro, não é novidade. Já nos anos 1960, algumas mulheres usavam o sovaco sem depilar como uma forma de resistência dentro do movimento hippie e com a popularização do feminismo. Mais recentemente, com as redes sociais, essa resistência se tornou um pacto pela autoestima. Atualmente, artistas como Miley Cyrus e Amandla Stenberg já foram fotografadas em eventos de gala sem se depilar. Em 2019, foi criada a hashtag "Januahairy" (um trocadilho para "janeiro peludo" em inglês) que incentivava as mulheres a deixarem seus pelos crescerem durante aquele mês.
Resistência estética
Em um Réveillon, a criadora de conteúdo Luiza Junqueira decidiu ficar um ano sem se depilar como uma das suas resoluções. Assim, passou 2015 sem chegar perto de uma lâmina de barbear ou de uma cera de depilação. "[O body hair positivity] é um movimento individual de mulheres que não veem sentido em tirar os próprios pelos, correndo o risco de causar alergias e irritação, apenas para atender uma imposição antinatural que os homens não enfrentam. É uma decisão individual que deveria ser natural, não um movimento", diz Luiza Junqueira, que fala muito sobre o assunto em suas redes sociais.
"Não sabia se ia conseguir cumprir ou não, até porque a imposição é muito forte. Mas queria provar para mim mesma que eu tinha essa escolha. Sofri várias represálias, de ouvir gente comentando alto que era nojento, homens mexendo comigo", diz a criadora de conteúdo.
"Essas situações foram me dando força para perceber como uma coisa tão natural pode ser política, uma forma de resistência até estética. Perceber a potência de um ato tão simples como não me depilar me deu mais força para continuar. Era uma coisa que eu fazia questão para provar para mim e para o mundo que sou uma mulher livre e que todas deveriam ter a liberdade de escolher o que fazer com o próprio corpo", explica.
Mulher é julgada como não higiênica
Para a criadora, uma mulher que decide deixar a gilete de lado está lutando por ela mesma e também pelas pessoas que preferem se manter depiladas —que não são, de acordo com seu ponto de vista, menos feministas por preferirem retirar os pelos.
"É necessário que pessoas se levantem contra essa questão porque a naturalidade dos corpos, tanto o da mulher como o do homem, é ter pelo", diz Luiza. "Eles crescem nos corpos humanos porque têm uma função. O que é preocupante é a imposição, o fato de não poder ser uma escolha. A mulher que escolhe não se depilar vai ser julgada como não higiênica. Essa imposição não é apenas estética. Você não poder escolher o que fazer com o seu corpo significa que as pessoas querem que as mulheres sejam obedientes e aceitem essas imposições para terem valor na sociedade."
Fazendo as pazes com os pelos na quarentena
É difícil imaginar que alguém ache gostoso ou divertido passar uma lâmina nas axilas e na virilha ou ter que lidar com a dor de fazer uma depilação com cera. O julgamento das pessoas, no entanto, não é o único, mas um dos principais motivos que leva muitas mulheres a continuar a se depilar. Com o confinamento social e o home office, se tornou possível passar pelo mesmo processo que Luiza viveu em 2015, com um pouco mais segurança. Protegidas dos olhares alheios, algumas mulheres decidiram deixar os pelos crescerem. A videomaker Naetê Andreo, 27, foi uma delas.
Quando a Organização Mundial da Saúde informou que estávamos em uma situação de pandemia e a quarentena foi estabelecida, Naetê percebeu uma oportunidade de entrar em contato com o corpo dela do jeito que ele é: com pelos. "Nunca fui encanada com isso, mas não deixava crescer porque me incomodava o olhar de julgamento na rua. Você está no transporte público e levanta o braço para se segurar, os olhares iam direto no sovaco. Eu me depilava para não receber esses olhares", diz.
Como não sairia de casa, ela usou a quarentena "como um laboratório". "Não queria ter essa obrigação com a depilação do tipo, você estar saindo de casa, perceber que não tirou os pelos da perna e parar tudo e se atrasar, para lidar com isso. Sendo que os pelos são uma coisa tão mínima, tão banal", diz.
Um ano depois, ela acredita que o laboratório funcionou e que, hoje em dia, tem uma relação mais pacífica com seus pelos. Tanto que, em um vídeo em suas redes sociais, Naetê aparece de calcinha e sutiã e com a virilha por depilar.
"Não foi uma decisão definitiva de parar de me depilar para sempre, mas entendi que meu corpo é cíclico e que os pelos fazem parte dele. Quando —e se— estou afim, eu aparo ou raspo. Conquistei a liberdade de me depilar quando quiser, não porque acho que é feio e proibido", diz Naetê. "Antes, achava que uma perna não depilada era sinal de que estava largada. Hoje, vejo que fica bem e que isso não significa nada."
Depilar é mais higiênico?
Um dos argumentos mais usados por quem defende a depilação é que o hábito seria mais higiênico do que deixar os pelos crescerem e que preveniria odores na área genital. "Mas não há nada que indique que retirar os pelos reduza os riscos de processos infecciosos ou que melhore a higiene da vulva e da vagina", diz a ginecologista Mariana Ferreira, do Rio de Janeiro.
Em contrapartida, ela afirma, a retirada completa dos pelos pode trazer desequilíbrio para a região genital e torná-la mais propensa a infecções.
Mariana pontua, ainda, que alguns pesquisadores da área da sexualidade acreditam que a depilação pode prejudicar o prazer nas relações sexuais. "Na região do folículo piloso [local onde se originam pelos e cabelos], há terminações nervosas que podem ser estimuladas durante o sexo. Seria mais uma forma de trazer sensibilidade no local. A retirada dos pelos, principalmente por depilação com cera, poderia prejudicar essa sensação extra", explica a ginecologista.
Ela lembra, no entanto, que o prazer depende de diversos fatores e que a cabeça é tão importante quanto o corpo na hora de a mulher se sentir sexualmente estimulada. "Se a pessoa se sente sexy quando está depilada, é claro que ela vai ter mais prazer estando sem os pelos. Então, não podemos bater um martelo sobre esse tema. Tem que ser uma escolha consciente de cada mulher."
No caso de Luiza, seis anos após aquela resolução de ano novo de não se depilar, elas continua com pelos na axila. Percebeu que a região está mais saudável e acha que a presença de pelos a torna mais atraente. "No fim, os pelos deixaram de ser uma questão. São apenas uma parte natural do meu corpo."
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