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'Esperei minha filha por 8 anos': como é a fila de adoção no Brasil

A psicóloga Maria Luiza Souto Hillbrecht, 42, conta como entrou na fila de adoção e fala do encontro com a filha - Arte UOL
A psicóloga Maria Luiza Souto Hillbrecht, 42, conta como entrou na fila de adoção e fala do encontro com a filha
Imagem: Arte UOL

Luiza Souto

De Universa

24/08/2021 04h00

A psicóloga Maria Luiza Souto Hillbrecht, 42, acredita que "estava escrito" que ela tinha que esperar por oito anos na fila de adoção pela chegada de Maria Clara, hoje com três anos. E que entre tantas coincidências da vida, sua história seria contada por alguém que tem quase o mesmo nome.

A moradora de Joinville, Santa Catarina, sempre sonhou em ser mãe de uma menina, mas tem o ovário policístico e o primeiro marido tinha problema de infertilidade. Sem querer passar pelo processo de FIV (Fertilização in Vitro), ela, que foi adotada junto a um irmão ainda bebê, achou a adoção ser destino o mais seguro.

E depois de quase uma década de espera, com divórcio e outro casamento no caminho -- com uma pessoa que descobriu há um ano também ser adotada --, a menina chegou numa data mais que significativa.

"A conheci em 25 de maio, no Dia Nacional de Adoção. Ela é linda, tem uma boca de coração. Não acreditava que aquela coisa pequenininha, fofa havia chegado", emociona-se ao recordar o dia em que pegou a filha no colo pela primeira vez.

Como crianças e adolescentes ficam disponíveis para a adoção

A psicóloga Maria Luiza Souto Hillbrecht esperou por Maria Clara na fila de adoção por 8 anos - Cassia Vilas Boas/Divulgação - Cassia Vilas Boas/Divulgação
A psicóloga Maria Luiza Souto Hillbrecht esperou por Maria Clara na fila de adoção por 8 anos
Imagem: Cassia Vilas Boas/Divulgação

A filha de Maria Luiza foi entregue a ela ainda na maternidade, após a mãe biológica da criança manifestar à Vara da Infância que não queria ficar com a criança. A lei da Entrega Legal permite essa possibilidade.

Mas há famílias que por motivos diversos acabam abandonando o filho. Numa série de reportagens publicada nessa quinta-feira (19), Universa mostrou com exclusividade que o Brasil acolhe pelo menos 8 crianças por abandono diariamente, segundo dados do SNA (Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento) disponibilizados pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

Quem faz o processo de acolhimento de crianças e adolescentes é a Vara da Infância e da Juventude. Quando isso acontece, a determinação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) é que se tente de todas as formas fazer com que essas pessoas retornem para suas famílias, ou morem com parentes próximos com os quais têm vínculos de afinidade. Desde 2020, 15.445 crianças e adolescentes foram reintegrados às famílias, segundo o CNJ.

Somente quando não há essa possibilidade do retorno ao seu ambiente familiar é que a Justiça coloca a criança e o adolescente sob a guarda de quem estiver habilitado a adotá-lo. Pela lei, o prazo de permanência da criança e do adolescente em programa de acolhimento institucional não deve ser maior que 18 meses, salvo comprovada necessidade de extensão desse período.

Escolha por perfil aumenta espera

Maria Luiza, que atua como perita judicial nos processos de adoção em sua cidade, procurou a Vara da Infância para manifestar o desejo de adotar. Para entrar na fila, o pretendente precisa ter uma diferença de 16 anos do adotado.

Ela explica que, ao preencher um formulário extenso junto ao então marido, colocou ali cada característica da criança que os dois desejavam: uma menina branca ou parda, saudável, de até três meses de vida, e que eles pudessem pegar ainda na maternidade. O casal foi entrevistado por uma psicóloga e assistente social sobre seu histórico familiar, profissão, expectativas sobre aquela adoção, entre outras questões.

Durante o processo, porém, ela se divorciou e casou-se novamente, com o fotógrafo Fabio Luiz de Andrade Roque, e nesse caso o novo companheiro também precisou passar por essas entrevistas.

Essas escolhas quanto ao perfil da criança a ser adotada, como raça e idade, interferem diretamente no tempo em que a fila da adoção vai andar. Segundo o SNA, o Brasil tem hoje 29.193 crianças acolhidas. Dessas, 15% (4.292) estão disponíveis para adoção.

Na outra ponta, o total de pretendentes na fila de adoção é maior: chega a 32.766, mas se restringir apenas por idade, desse total, 33% (10.896) desejam somente crianças de até 4 anos, e 30% (9.706) querem adotar pessoas de até 6. O número de crianças disponíveis para adoção com idade até os 6 anos é de 964.

Para além desses números, o que faz com que pessoas como Maria Luiza passem anos na fila de espera, quando os dados dos pretendentes batem com o da criança ou do adolescente, é que existe ainda o prazo de adaptação --determinado pela Justiça -- entre os envolvidos, chamado "estágio de convivência". Nesse período, é preciso haver primeiro um contato mais próximo, onde será avaliada a afinidade entre adotando e adotante(s). Pode acontecer de a adoção não se concretizar. No caso de Maria Luiza, ela teve a certidão definitiva da filha após seis meses.

Papel do estado é procurar melhor lar para a criança

A juíza Katy Braun do Prado, da Vara da Infância, da Adolescência e do Idoso de Campo Grande (MS) diz entender que os pretendentes tenham suas preferências, mas na sua avaliação é preciso que também se compreenda que todo esse processo deve ser obedecido.

"Precisamos entender que não estamos trabalhando para criar filhos para esses pretendentes. Parece antipático dizer isso, mas quem tem direito à convivência familiar é a criança e o adolescente. O estado não está trabalhando para o casal adotar."

A notícia que Maria Luiza esperou por 8 anos chegou em 24 de maio de 2018. "Maria Clara chegou", repete ao contar a conversa por telefone que teve com a assistente social do caso. No dia seguinte, o casal estava na maternidade, a mesma de onde Maria Luiza e seu irmão saíram para a adoção:

"Quando chegamos no quartinho onde ela estava, beijamos, cheiramos. E depois fui me emocionar mesmo quando perguntaram se eu queria dar de mamar."

Ano passado, em plena pandemia, meu marido, de 54 anos, descobriu que também foi adotado, então hoje somos todos adotados e muito felizes. Valeu toda a espera de tão linda e engraçada que é a nossa parceirinha.

Quem não é adotado fica no sistema até a maioridade

Apesar dos esforços para reintegrar crianças e adolescentes acolhidos ou de lhe dar uma família adotiva, muitos acabam ficando no sistema até atingir a maioridade.

Assim que o adolescente completa 18 anos, ele deve sair do serviço de acolhimento, salvo em casos de doenças graves em que ele precisa de cuidados especiais —e aí ele segue para o sistema de saúde.

Existem programas de apadrinhamento, nos quais uma família acompanha e ajuda essa pessoa, e repúblicas que abrigam jovens entre 18 e 21 anos, mas esses dependem de iniciativas das comarcas e do terceiro setor para que existam mais vagas, conforme explica a juíza Katy:

"A gente deveria ter, no país, uma república juvenil em que esses jovens ficariam até os 21 anos, mas na maioria das vezes a gente os libera e espera que eles consigam ter autonomia. Muitas comarcas têm programa de apadrinhamento para ajudar financeiramente esse jovem, mas isso não é uma política pública."

Série de reportagem sobre abandono de crianças, adoção e acolhimento. Na foto, a estudante Larissa -  Pryscilla K./UOL -  Pryscilla K./UOL
A estudante Larissa dos Santos Silva, 18, morou por três anos em serviço de acolhimento
Imagem: Pryscilla K./UOL

"Passei a desejar apenas completar a idade no abrigo"

Nascida e criada na região do Grajaú, zona sul de São Paulo, Larissa dos Santos Silva, 18, vive hoje numa república, após dar entrada num serviço de acolhimento aos 15.

Sem contato com o pai e com a mãe em situação de drogas, Larissa morou com a avó, dois tios e alguns dos 8 irmãos. Desde os 8 anos de idade, porém, sofria abuso de alguns desses parentes. Após denúncia no Consellho Tutelar, aos 15 foi para o serviço de acolhimento. A adoção nunca aconteceu.

"Eu queria ser adotada. Quem em abrigo não quer ser? Mas já tive irmãs gêmeas que foram levadas para a adoção recém-nascidas, e pensava no que minha mãe sentiria ao me ver adotada também, então passei a desejar apenas completar a idade no abrigo e viver minha vida. Hoje meu foco é juntar dinheiro e alugar uma casa", planeja a estudante de enfermagem.

Assim que completou 18 anos, Larissa foi encaminhada para o Celeiro Vó Tunica, uma república só para meninas criada pela consultora de desenvolvimento Djane Sant'Anna, em 2019. O nome é uma homenagem à mãe, que lhe deixou uma casa onde hoje funciona o abrigo para essas jovens, em Campo Belo, zona sul de São Paulo.

No local, mantido com doações e parcerias, as jovens estudam, fazem curso profissionalizante, além de tratamento psicológico e dental entre outros serviços. Djane também consegue vagas de empregos para cada uma ter sua independência.

"Estou preocupada com o resgate da autoestima dessas jovens, que elas tenham chance de um emprego digno e uma vida de merecem", afirma Djane, que quer abrigar até 60 jovens, incluindo homens, até 2025.

série de reportagem sobre abandono, acolhimento e adoção -  Pryscilla K./UOL -  Pryscilla K./UOL
A consultora de desenvolvimento Djane Sant'Anna mantém uma república para jovens que saíram de serviços de acolhimento
Imagem: Pryscilla K./UOL

A mineira de Belo Horizonte (MG) Viviane Teixeira Lopes, 19, está recebendo essa chance. Ela é uma das 8 moradoras que têm no Celeiro hoje.

Vivi, como é chamada, sofreu abuso de uma pessoa próxima a seus pais na adolescência, e foi enviada para um serviço de acolhimento pela primeira vez aos 16. Saiu de lá cinco meses depois, para morar com a avó, mas decidiu ir a São Paulo com um namorado, para tentar uma vida melhor.

Sem dinheiro, os dois acabaram morando pelas ruas de Jabaquara, zona sul de São Paulo, durante um mês, e como ainda tinha 17 anos, parou novamente em um serviço de acolhimento. Ao completar 18 anos, encontrou Djane. Hoje Vivi está concluindo o ensino médio, trabalha como jovem aprendiz e quer fazer faculdade de serviço social.

"Antes de vir para São Paulo, eu não tinha objetivo de vida, e hoje já consigo planejar minha independência."Nessa série de reportagem sobre abandono, acolhimento e adoção, Universa conversou ainda com Vitória Inácio Pereira da Silva, de 19 anos e que viveu desde os 7 anos em serviço de acolhimento. Depois de anos de abuso na família e sendo transferida entre lares temporários, Vitoria mora no Celeiro Tunica e pretende fazer faculdade de enfermagem. Leia também: Ao menos 8 crianças são acolhidas após abandono diariamente no Brasil