'Vivi dos 7 aos 18 anos em abrigo; é triste crescer sem mãe nem referência'
"Nasci em Campinas, no interior de São Paulo, e fui para um abrigo aos 7 anos, junto com meu irmão mais novo, na época com 3, e um mais velho, na época com 13. Saí de lá ano passado, quando completei 18, e hoje estou numa república que abriga somente mulheres.
Uma vizinha denunciou nossa mãe por nos deixar jogados em casa. Ela era usuária de drogas e tinha ainda mais dois filhos mais velhos. Um deles foi doado, e minha irmã, hoje com 28, ficou com a gente.
Lembro bem daquele dia: minha mãe foi chamada na Vara da Infância em Campinas. Lá, falaram para mim e meus dois irmãos que iríamos a um parque de diversões. A gente nem percebeu que estava indo era para um serviço de acolhimento. E aquilo doeu, porque poderiam ter sido mais sinceros.
Nos mandaram entrar numa kombi branca, e pedi para a nossa mãe entrar, mas ela disse que não podia, e chorou muito. Eu e meu irmão mais novo fomos para um abrigo, e o mais velho, para outro. Houve uma tentativa de nos enviar para a casa de uma tia, irmã dela, mas ela nos maltratava desde pequenos, e não aceitamos.
No início, chamávamos por nossa mãe, e ficava tentando entender por que não tinha pai nem mãe. Mas com o tempo o encanto e as esperanças foram acabando. E meu irmão mal lembrava dela.
Meu pai era alcoólatra e cometeu suicídio quando eu tinha 6 anos. Lembro que ele me colocava na cadeirinha da bicicleta e passeava comigo na rua, me apresentava para todo mundo. Sinto muita falta dele.
Duas famílias acolhedoras e reencontro com irmão
No mesmo ano em que entramos no abrigo, eu e meu irmão fomos enviados para uma família acolhedora [que fica temporariamente com a criança e ajuda no seu retorno à família biológica, extensa ou para a adoção], mas não deu certo: eles obrigavam a gente a seguir a religião deles, não podíamos assistir a qualquer desenho, nem nos ensinavam a fazer a lição. Então, pedimos para voltar para o abrigo, porque não estávamos gostando.
Depois, apareceu outra família acolhedora, e foi maravilhoso. Era um casal de idosos que recebeu 11 crianças ao mesmo tempo. Foi com eles que aprendi a ler, escrever, a me comportar, tive vontade de aprender mais. Hoje sou o que sou por eles, e sinto muita falta.
Ficamos naquela casa por um período de dois anos, e então nos enviaram para a aldeia infantil, em 2011. Diferente de um abrigo, ela é uma Casa Lar, com 10 crianças [adequado ao atendimento a grupos de irmãos e a crianças e adolescentes com perspectiva de acolhimento de média ou longa duração].
Foi nesse lugar onde recebemos a visita do nosso irmão mais velho, que havia sido separado da gente. Ele voltou para a casa da nossa mãe quando completou 18 anos. Já nossa mãe nunca nos visitou. Outros parentes também não.
Aos 14, já ia para a escola sozinha, e uma vez fugi para visitar a minha avó materna. Quando cheguei, minha mãe estava lá e chorou ao me ver. Fiz essas visitas mais vezes, e até levei meu irmão, mas fui desanimando porque senti que eu não era bem-vinda naquele lugar.
Hoje, minha mãe não me procura quase nunca mais. Se ela liga, conversamos normalmente, mas não tenho vontade de ver minha família. Tenho contato com meus irmãos por aplicativo de mensagem, mas há aquele vínculo.
"Nunca quis ser adotada"
Meu irmão sempre quis ser adotado, e quando completou 8 anos surgiu essa oportunidade, mas ele só queria ir se eu fosse junto. Eu não queria outra família, e o casal não estava interessado em mim também, porque eu já tinha 11 anos. Geralmente, dão preferência para crianças mais novas. Hoje, aos 15, ele ainda está na Casa Lar, mas tem padrinhos [a criança e o adolescente em programa de apadrinhamento têm encontros com seus padrinhos, fazem passeios, frequentam a casa, participam de datas comemorativas etc.].
Nunca quis ser adotada porque já estava acostumada com todas aquelas crianças, as tias e o carinho que recebia. Não me via mais com nenhuma outra família.
Mas é triste crescer sem mãe, sem referência. Às vezes, em situação de ansiedade, não tenho uma mãe, um pai para me consolar. Mas também não queria do jeito que era.
Na escola, perdi amizades porque me apontavam por morar em abrigo, por não ter pai, nem mãe. Tinha mãe que falava para as minhas coleguinhas não ficarem comigo. Eu chorava. Era de doer o coração.
Há pessoas que têm dó. Não tenham. Eu tenho orgulho do meu passado. Poderia não ter estudado, por exemplo.
"Hoje trabalho num banco e me acho chique"
Só podemos ficar num serviço de acolhimento até os 18 anos. Perto de chegar a essa idade, em junho do ano passado, comecei a me preparar para esse dia, e bateu desespero, porque não tinha vaga em nenhuma república em Campinas. Foi quando assisti a uma live sobre o tema, e fui convidada para morar no Celeiro da Vó Tunica, em São Paulo, que é uma república só para meninas.
Era lá, um albergue ou a rua, porque eu estava trabalhando como serviços gerais num restaurante, mas ele fechou quando foi decretada a quarentena por causa do coronavírus, e não tinha dinheiro para alugar nada.
Decidi então ir para São Paulo na coragem, sem conhecer ninguém, sem amigo, família, nada. Aqui no Celeiro recebo incentivo e ajuda para continuar meus estudos, a fazer faculdade.
Todas nós estudamos, trabalhamos, fazemos cursos. Nossa convivência é diferente, difícil, pois são personalidades diferentes. Mas isso é gostoso também porque aprendemos com essas diferenças.
Hoje, estou no segundo ano do ensino médio e quero fazer enfermagem para cuidar das pessoas. Também me arrumaram um emprego num banco, na área de recursos humanos, e sou muito bem acolhida lá. Estou me achando muito chique.
Aqui somos acolhidas até os 21 anos. Até lá me vejo feliz, realizada, cursando enfermagem, já atuando com as pessoas, com minha casa, viajando. Quero viver, porque chegou a minha hora." Vitória Inácio, 19 anos, estudante, de Campinas, em São Paulo
Esta reportagem faz parte de uma série sobre Abandono, Acolhimento e Adoção. Leia também: Ao menos 8 crianças são acolhidas após abandono diariamente no Brasil e 'Esperei minha filha por 8 anos': como é a fila de adoção no Brasil
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