'Se posicionar contra Bolsonaro não é escolha', diz Leticia Sabatella
A história do Brasil nem sempre valoriza as figuras femininas. Na contramão desse apagamento, a atriz Leticia Sabatella interpreta a imperatriz Tereza Cristina na novela "Nos Tempos do Imperador", da Globo. Outras facetas da personagem, como o interesse por escavações em sítios arqueológicos e o canto lírico, são explorados na trama.
Negando a ideia de que a imperatriz era apenas "uma mulher feia", Sabatella contou para Universa que, ao interpretar uma mulher do século 19, também compreende quais são as lutas que travamos, como mulheres, para conquistar nossos direitos.
A atriz também falou sobre autoestima, pandemia, posicionamento contra Bolsonaro e como polarização política e questões ambientais a afetam. "Luto todos os dias para não sucumbir à tristeza de ver o que está acontecendo no país", afirmou.
UNIVERSA: Quem é a imperatriz Teresa Cristina e por que sabemos pouco sobre ela?
LETICIA SABATELLA: Fiz uma pesquisa 'arqueológica', porque era uma personagem que não conhecia também. O desmonte das imagens da monarquia, feito quando se teve o golpe para a República ser instaurada como novo regime, também a atingiu.
Foi a última imperatriz, mas sofreu, então, esse apagamento histórico.
Há também o fato de ser mulher e a história ser contada por homens
O que se sabe é que ela era de uma região que já não tinha escravidão e alforriava escravizados em praça pública. Tinha interesse por arqueologia, participou das escavações de Veio e de Pompeia [cidades próximas a Nápoles, na Itália] e foi uma grande propulsora das artes. Ela mesmo praticava o canto lírico.
Então, fui vendo que não era uma figura tão apagada, as coisas que ela gostava de cantar, falando de amor, mostrava que tinha dentro dela um fogo. Só que há uma história muito romanceada sobre a figura dela: como é que dá para reduzir uma pessoa por que tem um 'nariz de berinjela'? Daí, conheci a pesquisadora napolitana Antonella Roscilli, que tem um estudo grande sobre a imperatriz. Foi ela que me disse que a imperatriz e Dom Pedro II protegiam anarquistas, por exemplo. E diferente da imperatriz Maria Leopoldina, que foi importante para a Independência, mas não conseguiu se adaptar ao país, a Tereza Cristina se apaixonou pelo Brasil.
Você interpreta uma mulher do século 19, ainda muito acostumada a valores de servir aos homens, de manter a família. Olhar para esse passado lhe inspira na luta pelos nossos direitos?
Totalmente. Até hoje, a gente tem essa questão de cedermos para sermos aceitas. Há uma dificuldade de romper com o estabelecido — que, mesmo quando se estabelece com harmonia, é opressor, por ser patriarcal.
Tereza Cristina ainda estava no tempo da escravidão. Deve ter havido o momento em que ela pensou que precisava cuidar de algo maior do que sua própria pele enquanto mulher.
Confesso que busco maneiras de contribuir para que haja mais harmonia, mais humanidade. Ao mesmo tempo, percebo que a gente precisa de um choque para romper os estabelecidos. E isso a gente encontra com estratégias, enquanto tentamos melhorar essa questão da luta das mulheres, porque não é saudável, nas dimensões físicas, psíquicas, emocionais, para nós.
Não vejo uma mulher que não tenha sido oprimida, acatado algo, por mais que tenha feito suas coisas, que não tenha sido adoecida ou violentada nesse sentido.
Naquela época, a luta acontecia, mas os limites eram mais estreitos, a comunicação era mais restrita. Hoje, temos informação com alcance global, e mesmo assim ainda podemos ser ludibriadas pela lógica patriarcal.
Como foram a paralisação e a retomada para as gravações da novela?
Foi muito bem conduzida por nossa equipe de produção, pela Globo. Logo de início, o diretor e o produtor já ligaram falando para tomarmos cuidado. De repente, vieram os sinais de lockdown, a Globo mandou todo mundo para casa, nunca tinha visto isso. Era um momento em que o presidente da República estava se expondo em aglomerações, o Brasil estava muito mal servido de exemplo.
A orientação era para cada um cuidar dos seus, de sua família. Não estávamos em férias, era para nos cuidarmos, porque a qualquer momento a gente iria voltar.
Durante o confinamento, passei por todas as dificuldades, como lidar com o emocional. E também me senti em uma grande enfermaria, porque eram povos indígenas pedindo ajuda, me mobilizei em campanhas com colegas da classe artística, fiz lives para ajudar quem ficou sem renda na pandemia...
Depois de um tempo, comecei a fazer coisas artísticas, estudar. Gravei o álbum da Caravana Tonteria, gravei um clipe, fiz algumas intervenções poéticas de Edith Piaf.
Consegui ser mais produtiva e a retomada da novela me ajudou mais ainda a recuperar a vitalidade e a energia, porque é instigante. É divertido, tem colegas que amo. Isso deu um gás
Como Tereza Cristina, você vai levar canto lírico à cena. E também já realizou o espetáculo Caravana Tonteria, cantando. Como é transitar pela música?
A música tinha ficado em segundo plano e queria retomar. A TV me trouxe isso na minissérie 'Hoje é Dia de Maria', no reality 'Popstar' que, para mim foi difícil, porque não tinha repertório pop. Mas, foi uma aula. Na novela 'Sangue Bom' também estive cantando e agora vem também em 'Nos Tempos do Imperador'.
Sinto que sempre tenho espaço na TV para ser mais de uma coisa. Tenho uma tendência escapista, se não for a arte, vai ser uma droga mais pesada [risos]. Além disso, consigo me comunicar melhor com ela. No show da Caravana, por exemplo, mais do que um discurso político, consigo atingir o coração das pessoas e falar de escolhas políticas melhores para o todo, justiça social, direitos humanos. É um caminho que nunca pode ser deixado de lado e por isso ele acaba incomodando tanto regimes autoritários. Porque a arte é transformação.
Alguns especialistas falam que temos uma "pandemia de violência contra mulher" também. Você já revelou que passou por uma situação de agressão. Que mensagem tem para mulheres que vivem isso agora?
Não sei se teria algo tão sintético, mas diria sobre a capacidade de acreditar em si mesma e questionar as opressões que vêm na forma de um agrado ou amor. É preciso ter cuidado com essa palavra 'amor', que se torna algo mágico, maravilhoso, divino, para falar de opressão.
Sei que isso é delicado, porque a gente nasce com esse propósito, quer se doar, amar, dar sentido dessa maneira. Além disso, há a culpa que é colocada para não sermos egoístas. É tudo uma forma de ludibriar o psicológico e deixar as mulheres reféns dessa lógica.
Experimentei muitas vezes um estado em que não se raciocina bem. Você intui uma coisa, mas acontece o gaslighting [manipulação psicológica como forma de violência]. Pessoas que são inteligentes e bem-sucedidas ficam emocionalmente assim, porque somos conduzidas a ser essa figura que concede. Atenção ao que se diz que é amor, porque nunca vai ser em nome do ódio ou de querer ganhar vantagem sobre você.
Você teve uma rede de apoio para sair dessa situação de violência? Qual foi a importância dela?
Aprendi que a única maneira de sair é com a rede de apoio —sozinha é muito difícil. A gente acredita que está escolhendo estar ali... A rede de apoio precisa olhar para essa mulher, porque é uma covardia o que acontece, diante da lógica patriarcal em que a gente vive.
Nas redes sociais, você publica várias fotos sem maquiagem e recebe elogios pela beleza natural. Você passou por um processo de autoestima para se libertar dos padrões estéticos?
Sempre fui mais disponível mesmo, fiz "A Muralha" sem maquiagem e, em "Liberdade, Liberdade", o mesmo, a maquiagem era sujar. A Delfina, em "Tempo de Amar", a própria Tereza Cristina... São personagens que vão me distorcendo.
No caso da imperatriz, havia a literatura de que ela era feia. Mas, vi que caímos em um engodo, com um olhar misógino, gordofóbico... Então fui vendo que ela só era uma pessoa que não tinha harmonização facial [risos]. Não estava em um padrão e me questionei sobre isso. Que padrão de beleza que colocamos na nossa cabeça? Isso é uma prisão.
Antes, a beleza era como se fosse algo que me impedia de ser uma boa atriz. Minha libertação é nesse sentido, porque me culpava muito por causa da vaidade. O equilíbrio para mim é ver que me arrumar não é um problema. Tenho cuidados estéticos, mas também gosto de ver a beleza mudando e acho que, ao estar nas redes sociais, isso me aproxima das pessoas.
Muitos artistas foram cobrados ou cancelados por posicionamentos políticos, especialmente neste ano. Você publica "Fora Bolsonaro" nas suas redes com frequência. O que se posicionar assim te traz de bom e de ruim?
É impossível não se posicionar contra, não sei se é uma questão de escolha. Porque não tem nada de bom, nada que justifique a gente precisar de um governo genocida com o país que a gente tem. É só ganância. Só poderia ter alguma paz de espírito para dar um passo e respirar, com tudo que isso pode acarretar, me posicionando contra ele.
Na repercussão do posicionamento da atriz Juliana Paes em defesa da médica Nise Yamaguchi, você foi elogiada por ter chamado a atriz para conversar sobre a polarização política que ela mencionou. Como lida com essa questão?
Sou tão cheia de defeitos que, muitas vezes, consigo ter uma capacidade de empatia e compreensão do outro. Sei que as pessoas não são uma coisa só. Claro que também sinto raiva, tenho limites e horas de dizer "f*da-se", mas sinto que mesmo com a pessoa mais enlouquecida me agredindo numa praça pública — e eu já passei por isso [em 2016, a atriz foi hostilizada em uma manifestação a favor do impeachment de Dilma Rousseff] — não sinto raiva, mas pena, dor, tristeza.
Uma vez, numa reunião na casa da Paula Lavigne e do Caetano Veloso, a Marisa Monte falou uma coisa bonita: "A média afina". Em uma plateia cantando, mesmo haja mil pessoas, o som sai afinado. Quando se permite isso, há uma harmonia nesse caos da polarização
Se não houvesse tanta fake news, a gente poderia julgar individualmente as pessoas. Como sabemos que não é só a consciência dos indivíduos, mas o que os abarca, precisamos iniciar com o diálogo. E tenho afinidade com Juliana, a admiro como atriz, personalidade, gosto de ver. Sou encantada por ela. Sei que falou uma coisa que não é legal, a maneira como tratou os movimentos sociais me doeu, mas ela não teve o conhecimento.
Precisamos pensar o coletivo de uma maneira mais generosa, e acho que nem mesmo o governo do PT, que nem foi tão de esquerda assim, foi capaz de trazer uma educação política. Deu acesso a muita coisa, à faculdade e aos bens de consumo, mas à cidadania aplicada, nas escolhas de projetos, não. Por isso, temos que ser muito delicados para explicar a situação para o grande público. Porque ali não estava falando só para a Juliana, mas para milhões de seguidores que ela tem.
Você usa sua voz para alertar para questões ambientais, dos indígenas. Como vê essas notícias com tom 'irreversível' sobre o meio ambiente?
Com muita tristeza, luto todos os dias para não sucumbir à tristeza de ver o que está acontecendo no país. Luto pelas crianças, pelos indígenas, pelos sem terra, àqueles que tem direito de ter uma vida com qualidade. Luto pela natureza e pelos animais. É dessa maneira que consigo ver um sentido. Procuro fazer a minha parte e inspirar as pessoas a terem coragem de lutar e de defender a nossa vida com qualidade.
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