'Tenho deficiência múltipla e estudo como ajudar mulheres como eu'
"Tenho 34 anos, moro em Salvador e me tornei uma mulher com deficiência múltipla, após diversas sequelas deixadas por duas doenças autoimunes e sem cura: a neuromielite óptica ou síndrome de Devic e a doença de Still.
A primeira é uma doença que afeta o sistema nervoso central e se manifesta através de surtos que podem durar dias até semanas. A outra é uma condição reumatológica que ataca todas as articulações do corpo, causando dores, inchaços e deformidades. Em decorrência das duas doenças, atualmente tenho a mobilidade reduzida.
Tudo começou na adolescência. Entre os 15 e os 18 anos, tive diversos surtos: ora perdia os movimentos do lado direito do corpo, ora do lado esquerdo, ora a crise era de tetraplegia, ora era apenas de paralisia. Por conta disso, muitas vezes fui completamente dependente de uma cadeira de rodas. Além disso, uma das minhas mãos também ficou deformada de forma permanente.
O acompanhamento médico com neurologistas e reumatologistas se tornou uma constante em minha vida assim como a fisioterapia, mas as crises melhoraram quando passei a tomar diariamente corticoide.
Aos 18 anos, também fiquei completamente cega. Na época, pensei que seria apenas um surto e que a minha visão voltaria como já tinha acontecido antes, em que ficava sem enxergar parcialmente e depois recuperava. A perda dessa vez, no entanto, foi total e definitiva.
Diante dessas sequelas, logo procurei me adaptar. Com a consciência de que não dá para voltar no tempo e que precisava viver a partir do que tenho e como tenho, fui aceitando a deficiência múltipla e segui em frente. Não fiquei de luto nem dou tanta importância ao que perdi. Busquei e busco a melhor forma de viver um dia de cada vez.
Obviamente, não sou otimista o tempo inteiro, mas acredito que todo ser humano tem a capacidade de encontrar estratégias para ultrapassar seus obstáculos. Assim tem acontecido comigo. Busco driblar as barreiras no dia a dia acionando minha rede de apoio: amigos, parentes e outras pessoas dispostas a me ajudar.
"Através das minhas necessidades, aprendi a lutar pelos direitos das pessoas com deficiência"
Passei a experimentar na pele a falta de acessibilidade em diversos sentidos: arquitetônica, comunicacional etc, além de enfrentar o capacitismo existente na sociedade. Muitas das limitações das pessoas com deficiência são fruto da falta de oportunidades, não tanto da condição física.
Inclinada a me envolver com causas sociais e vendo a possibilidade de lutar por meus direitos, na época da faculdade, escolhi cursar Serviço Social e fui aprovada na Universidade Federal da Bahia. Esse período foi uma grande adaptação. Tanto para mim quanto para quem convivia comigo. Por exemplo, antes de todo semestre, eu mandava um e-mail para os professores avisando que iriam receber uma pessoa com deficiência e, na ocasião, recomendava quais os meios de acessibilidade.
Já para ir para as aulas, como eu não conseguia andar sozinha por conta da falta de equilíbrio, minha mãe me colocava dentro do transporte público e eu combinava com alguma colega para pegar o mesmo ônibus que eu ou me encontrar no ponto de descida.
Após concluir a graduação, acabei levada pelas circunstâncias a continuar no meio acadêmico. Frequentando o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher da universidade, tive a oportunidade de fazer uma disciplina como ouvinte e depois como aluna especial. Posteriormente, apresentei durante um evento científico um artigo que escrevi falando sobre minhas inquietações na luta para me afirmar como mulher com deficiência e, quando o Núcleo abriu edital para o seu programa de mestrado, adaptei esse artigo para concorrer a uma vaga.
Meu projeto foi aprovado e hoje estou estudando e pesquisando a experiência de mulheres com deficiência em relação à subjetividade resultante da busca por autonomia. A minha investigação parte da minha trajetória de vida e da percepção de que há um capacitismo embutido na sociedade que faz com que a potencialidade da mulher com deficiência seja constantemente questionada.
"Me dedico a buscar meio de combater o capacitismo"
Em 2016, passei a integrar o Conselho Estadual dos Direitos das Pessoas com Deficiência na Bahia, onde por exemplo pude contribuir com a criação do fórum de combate à violência contra PcDs. Essa iniciativa surgiu em decorrência das minhas reinvindicações para uma maior atenção à violência praticada contra mulheres com deficiência, que sofrem duplamente por conta da sua vulnerabilidade. Hoje, estou afastada das atividades do Conselho para me dedicar a outras frentes.
Em 2017, passei a atuar no Movimento Brasileiro de Mulheres Cegas e com baixa visão, onde atualmente estou como uma de suas coordenadoras. Quando me encontrei em meio a outras mulheres com experiências semelhantes às minhas, fiquei encantada. Nosso objetivo é mostrar a importância do empoderamento feminino como principal instrumento para a ruptura do ciclo de violência e redução das desigualdades sociais.
Anualmente, realizamos encontros em cidades distintas do país para discutir temas que tratem da participação e inclusão das mulheres cegas e com baixa visão nos espaços públicos e privados. Nosso coletivo está cada vez mais fortalecido e contribui para empoderar muitas outras mulheres a partir do compartilhamento de experiências.
Desse modo, busco atuar na luta contra o capacitismo, denunciando suas formas de opressão e buscando promover meios para superá-lo. Quero cada vez mais colocar-me nos espaços a fim de naturalizar a presença do corpo "deficiente", pois entendo que as pessoas devem deixar de lado seu preconceito e nada melhor do que o convívio para isso." Priscilla Isabel, 34 anos, tem deficiência múltipla e vive em Salvador-BA.
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