'Sofri abuso na infância e ajudo mulheres a ressignificar violência'
Aviso: o depoimento abaixo tem relatos de situações de abuso sexual que a ativista viveu
Meu nome é Luiza Tojer, tenho 37 anos. Nasci em uma família de classe média, tive todos os privilégios da "família tradicional brasileira". Por volta de oito, nove anos, me dei conta de que meu tio abusava de mim.
A gente morava no mesmo prédio, em Perdizes. A família se reunia todos os finais de semana numa casa no interior. Como todo pedófilo, ele era o legalzão da criançada. Levava todo mundo nos passeios, eu ia sempre no banco da frente.
Quando estávamos no carro, ele colocava minha mão no pênis dele. Quando me levava para andar de moto, me colocava na frente e ficava se esfregando. Na piscina, ele me segurava forte e ficava se roçando em mim. Essas são algumas memórias que eu tenho.
Não sei desde quando isso aconteceu. Mas era constante, o tempo todo. A gente tinha uma convivência diária, morava todo mundo no mesmo prédio, os primos estudavam na mesma escola, fim de semana e férias passava todo mundo junto.
Quando me dei conta do que estava acontecendo, fui confrontá-lo na frente da minha tia [esposa dele]. Eu tinha oito ou nove anos. Eles me chamaram de louca, depois eu desci para a casa dos meus pais e contei para eles. Eles não acreditaram. Acabei carregando esse silêncio durante muito tempo. Parei de falar com meu tio, mas continuava convivendo.
Esse silêncio da família era muito louco. Ninguém nunca questionou porque eu não falava com ele. Quando eu tinha 23 anos, teve um Natal em casa. Eu pedi para ele não trazer os cachorros dele, para que não brigassem com o meu. Ele trouxe, e não deu outra, os cachorros começaram a brigar. Nessa hora eu chutei os cachorros dele, no meio da confusão ele estava passando perto de mim, eu encostei a cabeça dele na parede e falei tudo que eu tinha que falar. Vomitei tudo. Chamei ele de abusador, falei que ele passou a mão em mim a vida inteira.
Eu apaguei vários momentos traumáticos da minha vida. Mas lembro bem dessa cena, eu gritando na cara dele com a mão no pescoço dele. Foi aquela zona, Natal, uns gritando de um lado, outros, do outro. Esse foi um dos momentos mais importantes da minha vida, e também um dos mais dolorosos.
Quando tudo acabou, meu pai e minha mãe sentaram comigo e choraram muito, se arrependeram, pediram desculpas por terem invalidado o que eu falei na infância. Naquele momento a gente se ajustou como família, se uniu ainda mais.
Quando se sofre um trauma como esse, as consequências são para sempre. Eu tive um surto quando comecei a me relacionar e gostar de uma pessoa pela primeira vez. Vi que estava tudo muito confuso na minha cabeça. Foi a terapia que salvou minha vida. Nesse processo, comecei a me sentir livre para contar minha história para as pessoas.
Percebi que, quando eu falava da minha história para outras mulheres, elas se sentiam seguras para contar também. Comecei a escutar vários tipos de violência. Passei a acolher em casa mulheres que apanhavam de homens e não tinham para onde ir.
Com 30 anos, fui morar em Nova York. Pensei: "Não vou permitir que uma pessoa que me estuprou me impeça de viver meus sonhos. Não vai ter homem nenhum, não vai ter violência nenhuma que faça com que eu pare de viver as coisas que tenho que viver e encher a vida com a potência que eu sou".
Foi quando conheci a Ingrid Silva, bailarina negra, brasileira e ativista, dona da plataforma EmpowHer New York. Fui a uma palestra dela e no final tinha um microfone aberto, tomei coragem e contei minha história. Foi a primeira vez que falei em público. Tinha 80 mulheres assistindo. No final as pessoas estavam chorando, vieram falar comigo.
Dois meses depois, a Ingrid me convidou para ser palestrante. Nesse momento, eu pensei: "Acho que posso ir além". Fiz a palestra, foi muito importante para mim. Abriu uma chave para várias coisas.
Nós, mulheres que somos violentadas, nos invalidamos demais. Só por sermos mulheres, já somos invalidadas o tempo todo.
Decidi estudar fotografia. Três meses depois, sofri um acidente, bati a cabeça e atingi um nervo na coluna. Fiquei sete meses sem poder carregar nada, nem segurar o celular, nem sentar na frente do computador. Mas não desisti. Comecei a voluntariar no EmpowHer, que juntava mulheres de todos os lugares do mundo com várias experiências.
Foi aí que tive a ideia de fotografar mulheres sobreviventes de violência. A mulher que fala sobre a violência (porque sofrer, todas nós sofremos) é estereotipada como coitadinha, sofrida, nunca como uma pessoa que fez acontecer. Eu queria trazer luz, mostrar: "Olha o que fizeram com a gente e olha como a gente tá".
Tive a ideia de pedir para mulheres comuns se auto-retratarem e escreverem sobre si mesmas, sobre como estavam se sentindo. Algumas falaram que começaram a se ver com outros olhos, que enxergaram traumas que nunca tinham visto, que o processo estava sendo intenso.
Enviei meu projeto a uma ONG que trabalha com mulheres imigrantes brasileiras em Nova York e foi aprovado. Virou um site, o "The Power in You", onde eu conto a história de quatro mulheres, incluindo a minha, que sofreram diferentes tipos de violência. Uma foi estuprada por um médico dentro do consultório, outra foi estuprada desde a infância e outra sofreu violência doméstica. Eu contei a história delas e fiz um ensaio.
Desenvolvendo esse projeto, descobri que o que mais dói na gente é o silenciamento. Existe a violência e existe a pós-violência, que é o silenciamento.
Isso causa muitos traumas, ferra com a nossa cabeça. É o silêncio de quando você vai desabafar sobre um relacionamento abusivo com uma amiga e a pessoa te invalida, põe a culpa em você. Até dentro do feminismo as pessoas não sabem acolher uma mulher quando ela decide falar sobre violência.
Fiz uma cartilha sobre quais são essas violências. Saber detectar, saber escutar, uma escuta de qualidade, saber respeitar. Meu projeto não é para falar da violência em si nem do violentador. É para falar: "Vamos nos dar amor, vamos aprender a se escutar".
Se a gente não consegue escutar uma criança que está sendo abusada dentro da nossa própria casa, como vamos escutar outras pessoas?
A violência que a gente sofre é o tempo todo, o dia inteiro, você está andando na rua e uma pessoa olha como se tivesse te comendo, você pega um ônibus e o cara se masturba do seu lado. A gente tem que ler as histórias, lidar com a realidade.
Eu rompi essa barreira de ter vergonha de falar quando entendi a importância de falar. Acredito que quanto mais a gente fala, mais a gente dá força para outras mulheres tirarem o silêncio que fica entalado na garganta.
A primeira vez que eu consegui contar do meu abuso para uma amiga, tirei um peso de 100 quilos das costas. Imagina quantas mulheres carregam a vida inteira o peso de uma violência?
A gente sabe vai morrer e essas violências vão continuar existindo. Mas eu vou lutar todos os dias para fazer com que, pelo menos, as mulheres se enxerguem pelo que nós realmente somos.
Luiza Tojer, 37, fotógrafa e ativista.
Como denunciar violência contra mulher
Se você é ou foi vítima de abuso sexual ou de violência doméstica, há canais de comunicação e de abrigo para você ter respaldo. Pelo Disque 181, é possível para denunciar anonimamente a violência. A Central de Atendimento à Mulher, no Disque 180, ligação é gratuita, anônima e disponível em todo o país. As Delegacias da Mulher e as Casas da Mulher Brasileira, nas capitais onde existem, também são formas de apoio à mulher que sofre violência. Pelo Disque 100 e nas delegacias também podem ser registrados casos de abuso contra criança.
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