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'Perdi minha irmã grávida em um feminicídio e transformei a dor em arte'

A artista Bárbara Milano - Arquivo Pessoal
A artista Bárbara Milano Imagem: Arquivo Pessoal

Bárbara Milano, em depoimento a Anahi Martinho

Colaboração para Universa

31/08/2021 04h00

Meu nome é Bárbara Milano, tenho 34 anos. Em novembro de 2018, minha irmã, Beatriz Milano, foi morta pelo companheiro. Ela tinha 27 anos e estava grávida de quatro meses e meio, de uma menina, que se chamaria Helena.

Ela tinha se mudado havia dois meses para Rondonópolis (MT), a convite da empresa onde trabalhava como médica veterinária. Nossa família vive em São Paulo. Nós não chegamos a conhecer a casa dela, estávamos nos preparando para ir visitar, quando chega a notícia da morte, que num primeiro momento passou por natural. Essa foi a forma como esse indivíduo, que nos procurou para dar a notícia, relatou para a gente: "Ah, não sei o que aconteceu".

Foi muito doloroso esse processo, esse pouco tempo dela nessa cidade, essa não possibilidade de ter ido até lá, de ter vivenciado um pouco com ela essa mudança.

Ela tinha esse relacionamento há 11 meses. Horas antes do crime, ele a levou para jantar em um restaurante e a pediu em casamento. Eram detalhes que ficavam ressoando na nossa mente, mas a gente buscou ser cuidadoso. Até que chega o laudo do IML, quinze dias depois do enterro: traumatismo crânio-encefálico. A partir de uma pancada na cabeça, ela sofreu uma hemorragia interna.

A partir do momento em que isso foi revelado, ficou claro o fato de que ela havia sido ceifada, não morrido simplesmente. Ele foi preso somente dias depois, em Ribeirão Preto, já na casa dos pais. A partir dessa revelação, começa um novo processo. Eu e minha mãe fomos a Rondonópolis para buscar as coisas dela, conversar com a promotoria, processar tudo.

Eu já vinha de um lugar onde as relações eram importantes no meu trabalho. Venho de processos artísticos híbridos, misturando diferentes linguagens e partindo dessa ideia de modos de existência, sempre numa relação intrínseca arte-vida. De repente, quando tudo isso aconteceu, entrei num momento de acolhimento interno, parei minha produção e fiquei ali, o tempo todo com minha mãe. Aos poucos, fui reconstruindo minha história. Só voltei a produzir meses depois.

Comecei a retomar o trabalho revisitando os processos que tinha passado nos últimos anos, desde a minha formação. Primeiro, veio um desejo de que isso pudesse funcionar como um rito de passagem. O primeiro trabalho que construí depois disso foi "Mãe", uma performance que aconteceu na Lavra 2019, no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica, no Rio de Janeiro.

O evento tinha como objetivo a ocupação da praça Tiradentes com diversas performances. Eu não queria deixar minha mãe sozinha, e isso vai gerando uma motivação interna na qual eu convidei ela para performar comigo. Criei a performance já ouvindo indicações e desejos dela. Ela foi também muito embebida do desejo de que funcionasse como um rito.

Bárbara Milano e a mãe, Nazaré Soares, na performance "Mãe" - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Bárbara Milano e a mãe, Nazaré Soares, na performance "Mãe"
Imagem: Arquivo Pessoal

O trabalho teve uma resposta muito positiva do público, no que se refere a empatia, compreensão. As pessoas perguntavam: "É sua mãe, mesmo?" Aquilo foi muito forte, essa imagem da mãe que está lá como performer, e não um perfomer que ocupa o lugar de mãe.

Ainda em 2019, surgiu a proposta de uma exposição coletiva no Ateliê 367, o "Abraço Coletivo". A partir do enxoval que minha mãe estava costurando para a neta, criei a obra "Aos Filhes que Não Chegaram a Nascer", usando as meinhas.

Depois veio o "Meu Luto Luta", que foi um trabalho de escuta de mulheres que haviam sobrevivido a violências. Nunca concluí um produto final desse trabalho.

Foi bem difícil. Quando existe esse espaço de escuta, essas mulheres querem falar, precisam falar, mostram imagens, falam em detalhes.

Eu me vi em uma camada tão sensível da minha existência que mal conseguia realizar o trabalho. Talvez no futuro eu esteja mais instrumentalizada para isso. A ferida ainda estava muito aberta.

No início deste ano, fiz a exposição "Maternagem", na Oficina Cultural Alfredo Volpi, em São Paulo, que coroa esse processo de entender a morte da minha irmã como a morte de uma mãe, alguém que morre para proteger essa maternidade ainda no ventre.

Foram vários trabalhos nesta exposição, um também com a participação da minha mãe, onde ela traz as abayomis (bonecas feitas à mão), um texto-cura com Renata Felinto e o "Jardim para Erê", em parceria com Mônica Ventura, que estava grávida no momento. Criamos uma faixa com os dizeres "Amor de ventre nem nasce, pois sente".

Obra "Jardim para Erê", de Bárbara Milano e Mônica Ventura - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Obra "Jardim para Erê", de Bárbara Milano e Mônica Ventura
Imagem: Arquivo Pessoal

A maternidade já era muito forte para minha irmã e está intimamente ligada ao fato dela ter sido assassinada. Há uma discussão complexa: de um lado, o direito da mulher escolher sobre o próprio corpo, escolher, por exemplo, abortar, que é algo que a gente indiscutivelmente defende. De outro, o direito da mulher escolher ser mãe, porque há mulheres que são obrigadas a abortar. O que aconteceu com a Bia tem um pouco disso.

Ela se viu numa situação em que não tinha o direito de carregar esse filho. Ele não aceitava a criança, não queria ser pai

Depois, a gente foi compreendendo que ela vivia uma relação violenta, não foi um fato isolado. Quando as pessoas pensam em violência doméstica, pensam em um espancamento diário, que vai escalar para um extremo. Ela vivia uma violência psicológica, mas ela era muito protetora em relação a contar qualquer fato que nos colocasse diante do medo de um final como esse.

Não era uma relação linda, mas não dá para dizer que houve uma escalada, que estava explícito que isso ia acontecer. Foi tudo muito sutil e muito rápido, eles moraram só dois meses juntos. Acho que quando ela estava pensando em tornar isso comunicável de alguma forma, isso acabou. A gente também não imagina que uma pessoa formada, um médico, com futuro pela frente, esteja disposto a matar alguém.

Nesse momento, estou concluindo um processo de residência do Pivô Pesquisa, onde trago a mobilidade ativa a partir do ciclismo urbano como processo de auto-cura.

Esse trabalho nasceu de uma empatia profunda que eu senti pela morte da Marina Harkot. Era uma pesquisadora acadêmica como eu, jovem como minha irmã, que foi morta por alguém que fugiu da cena do crime e não prestou socorro. Vi algo entre eu e minha irmã num arquétipo de Marina.

Havia começado a andar de bicicleta porque a Bia nos deixou a bicicleta dela. Eu sentia a presença dela quando pedalava pela cidade. Daí, fui conhecendo pessoas, me movimentando pela cidade, compreendendo essa vulnerabilidade do corpo em cima de uma bike.

A partir da morte da Marina, eu penso em como semear essa empatia que a gente busca ao contar sobre uma dor. É menos autopiedade e mais levar isso para um lugar comunitário. No dia 12 de setembro faremos uma bicicletada às 8h da manhã partindo da Pivô (avenida Ipiranga, 200), em direção ao Pico do Jaraguá.

Beatriz Milano, vítima de feminicídio aos 27 anos - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Beatriz Milano, vítima de feminicídio aos 27 anos
Imagem: Arquivo Pessoal

Também criei a página "Por Todas as Bias" para documentar a história dela e saber que são muitas as Bias que são ceifadas diante dessas injustiças sistêmicas dentro de um contexto machista.

Depois de três anos, a gente finalmente se vê diante de um julgamento, que está por vir. Ao mesmo tempo, essa é uma realidade que não existe para muitas famílias que perdem suas filhas, irmãs, sobrinhas. Quero que a justiça pela Bia venha como um símbolo de uma justiça que precisa acessar a todos. É assustador que esse número só aumente.

A violência está em todos os lugares, mas é assustador o quanto vêm crescendo os dados de feminicídio e violência doméstica. Assusta pensar que o espaço do lar, que deveria ser um espaço de segurança, vem se tornando um dos lugares mais perigosos para mulheres e crianças.

Essa violência de gênero que mulheres sofrem no contexto doméstico é aplicada por pessoas do convívio afetivo, amoroso, pessoas em que essa mulher confia. Mesmo que essa mulher seja independente, trabalhe, tenha profissão, cuide da casa, dos filhos, ela está sujeita à sobreposição desse indivíduo que representa o patriarcado.