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'Cresci num ambiente violento e hoje dou aula de defesa pessoal feminista'

A lutadora e instrutora de defesa pessoal Brysa Mendes - Arquivo Pessoal
A lutadora e instrutora de defesa pessoal Brysa Mendes Imagem: Arquivo Pessoal

Brysa Mendes, em depoimento a Anahi Martinho

Colaboração para o UOL

01/09/2021 04h00

Meu nome é Brysa Mendes, tenho 27 anos. Sou de Buerarema, no sul da Bahia, faço educação física na UESC (Universidade Estadual de Santa Cruz), em Ilhéus, e trabalho ministrando aulas de defesa pessoal feminista desde 2017.

Fiz jiu-jitsu quando criança, comecei aos 10 anos, aqui na minha cidade. Meu pai quem pagava, mas quando eu tinha 13 anos meus pais se separaram e tive que parar. Minha mãe não tinha condições de pagar e também falava que era coisa de menino. Acabou que o jiu-jitsu saiu da minha cidade, que é pequena, tem só 18 mil habitantes.

Só fui voltar para o tatame em 2014, com 20 anos. Na época, eu cursava ciências sociais na mesma universidade onde estudo hoje, e queria fazer alguma atividade física. Como odiava musculação, voltei para o jiu-jitsu. Foi quando percebi que as artes marciais são bem mais que uma atividade física. Consegui ter auto-confiança, adquirir conhecimento sobre meu corpo, sobre manejo da raiva, sobre expressão de sentimentos.

Cresci num ambiente de muita violência doméstica. Sou filha única dos meus pais e acabei presenciando brigas, violência física e psicológica.

Era uma criança no meio daquilo tudo e o corpo acaba absorvendo. O que a gente passa na infância, a gente acaba levando até a fase adulta. Essas marcas ficam.

Era muito tímida, não tinha confiança nas coisas que fazia e falava. O jiu-jitsu mudou tudo isso. Comecei a me expressar mais, até minha postura mudou na forma de andar, de me portar nos lugares. Passei a confiar mais em mim. Não podia ver uma discussão, isso mexia com meu psicológico. Hoje isso não me abala mais. Também fiz terapia e acho que todo mundo deveria fazer.

Hoje sou faixa roxa, luto há sete anos, participei de alguns campeonatos, já fui campeã baiana, fiquei em terceiro lugar no brasileiro.

A arte marcial foi um divisor de águas na minha vida. E comecei a pensar que todas as mulheres deviam praticar jiu-jitsu. Hoje entendo que qualquer arte marcial traz isso, inclusive qualquer atividade física. Já treinei também capoeira e muay-thai.

Por volta dos 23 anos, eu tinha uma namorada em Salvador e ia muito para lá. Comentei com ela que tinha vontade de dar aulas de defesa pessoal, mas que era muito tímida. Ela entrou em contato com um grupo de professoras em Salvador, que começaram a fazer várias oficinas e eu fui uma das convidadas para dar uma oficina de defesa pessoal.

Foi o pontapé inicial. Comecei a andar, falar com pessoas que trabalhavam com defesa pessoal para mulheres. Até então, nunca tinha dado aulas desse tipo aqui na região do eixo Ilhéus-Itabuna. Com o tempo comecei a dar essas aulas, ainda com o nome de defesa pessoal feminina.

Minha companheira foi quem falou: "Você não faz defesa pessoal feminina, você faz defesa pessoal feminista". Ela dizia:

"Você não ensina só a se defender. A aula que você começou a dar também passa por aspectos de enfrentamento, resposta em relação à violência que as mulheres sofrem. Você faz o resgate dessas vivências e, a partir disso, começa a plantar essa semente da auto-defesa, para elas terem uma resposta de enfrentamento, não é só técnica".

No início eu ficava insegura, presa às questões acadêmicas. Pensava que não tinha leitura suficiente para falar sobre feminismo. Mal sabia eu que já estava fazendo isso na prática.

Depois de ler muito, estudar, comecei a fazer algumas oficinas na UESC e depois falei "acho que está na hora de mudar o nome e assumir que é defesa pessoal feminista". Defesa pessoal para mulheres ou feminina é muito pequeno para o trabalho que precisa ser feito. Aí eu assumi esse nome e também abri para o público LGBTQIA+.

Brysa Mendes, faixa roxa em jiu-jitsu e instrutora de defesa pessoal - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Brysa Mendes, faixa roxa em jiu-jitsu e instrutora de defesa pessoal
Imagem: Arquivo Pessoal

Nos workshops, quando pergunto quem já sofreu violência, todas levantam a mão. Todas têm alguma vivência, seja assédio, violência doméstica, psicológica, namorado, irmão e até no trabalho. Eu dei um workshop para alunas de enfermagem, que sofrem muito esse tipo de assédio. Já dei workshop para mulheres surdas, que é outra ideia de percepção enquanto violência.

A gente não pode só aprender a técnica. Temos que entender porque sofremos aquela violência e quais são os tipos de violência. Como pessoas diferentes, estamos sujeitas a tipos de violência diferentes. Não dá para colocar todo mundo dentro de uma caixa e ensinar a mesma defesa pessoal para todo mundo.

Eu, por exemplo, sou uma mulher lésbica que não performo feminilidade. Eles não vão me puxar na festa para me dar um beijo, eles vão me dar murro por eu "querer ser homem".

Nenhuma violência é menor que a outra. Mas temos que entender a defesa pessoal a partir disso. Como vou me defender a partir do que eu sou e em que tipos de situação eu corro mais risco.

Eu começo o workshop perguntando se elas acreditam que podem se defender. Quando você acredita, você se defende de qualquer jeito. Tive uma aluna que um cara tentou agarrar ela por trás e ela se defendeu com uma mordida. Mordeu com tanta força, que se ele não tivesse saído a tempo, acho que teria arrancado um pedaço do braço do cara.

Se você acredita que pode sair daquela situação, você consegue. Mas se você não acredita, o medo toma conta e te paralisa. Vencer o medo é um processo.

Eu sempre pergunto: "Você já leu a Lei Maria da Penha?". Só três ou quatro levantam a mão. Se você conhece as leis, você sabe o que pode fazer, por exemplo, quando vê uma amiga sofrendo violência. É preciso ler, se informar.

É preciso também criar redes de mulheres. Não só rede de apoio, de proteção, mas rede de incentivo econômico, de incentivo para estudo. Comprar produtos feitos por mulheres, fazer o dinheiro chegar na mão delas. Tudo isso é lutar contra a violência de gênero, porque se ela tiver independência financeira, poderá sair mais facilmente de uma situação abusiva.

Outro ponto importante é que os homens comecem a discutir masculinidade. Eu tenho alunas que têm filhos, irmãos. Nós não vamos acabar com a violência contra a mulher enquanto os homens não começarem a discutir isso. A masculinidade tóxica é ruim para eles também. O ambiente das artes marciais ainda é majoritariamente masculino. Converso muito com meus colegas homens e tenho observado algum movimento no sentido de ler, discutir entre eles.

Aprender a se defender, se auto-conhecer e se fortalecer são atitudes de curto a médio prazo. Mas para acabar mesmo com a violência o único meio é combater a longo prazo esse machismo enraizado. Eu sonho com isso.

Nunca precisei bater em ninguém, mas ando preparada na rua o tempo todo. Já tive situações em que precisei me impor, sabendo que, se acontecesse alguma coisa, eu conseguiria me defender e sair dali. A gente aprende para não usar. É melhor saber e não usar do que precisar e não saber.

Com a prática, você fica mais atenta na rua, entra num lugar e olha para a porta, entra no ônibus e analisa onde vai sentar. Acreditar que pode se defender é 80% do caminho. Isso é algo que é tirado das mulheres na nossa educação. Essa confiança é tirada de nós.

Como estudante de educação física, faço estágio em escolas e vejo como as meninas têm pouca coordenação motora, muitas não querem nem participar da educação física. E aí chega na fase adulta com esse receio: "Não consigo, não tenho habilidade".

Meu sonho é abrir um espaço para ensinar defesa pessoal feminista e jiu-jitsu também. E comecei a fazer o podcast "Conheça Sua Força", porque percebi que isso precisava ser expandido.

A gente tem que imaginar todas as situações de perigo antes de acontecerem. Não é ficar paranoica, mas temos que saber estamos vivendo uma guerra, infelizmente é isso. Estamos em estado de guerra e temos que prever as situações. Quando a gente pensa, o corpo entende.