'Não nos sentimos seguras': medos de lésbicas ao escolher destino de férias
Escolher o roteiro, comprar passagens, fazer as malas — seja para perto ou para longe, viajar demanda certo planejamento, mas se você for uma pessoa LGBTQIA+, essa tarefa pode ser um pouco mais difícil.
Em agosto, a ex-BBB Marcela Mc Gowan relatou alguns constrangimentos durante uma viagem com a namorada, a cantora Luiza, às Ilhas Maldivas - lá, como em outros 68 países do mundo, ser homossexual ainda é crime. Mas, mesmo em países que têm leis que protegem a população LGBTQIA+, como o Brasil, viajantes não estão livres de situações constrangedoras e até ameaçadoras.
"Muitos casais têm receio de deixar o conforto do seu ambiente de costume para correr o risco de serem discriminados durante uma viagem, mesmo que o destino seja um sonho", fala Alex Bernardes, diretor do Fórum de Turismo LGBT do Brasil.
Ele cita como principais riscos a pessoas LGBTQIA+ que viajam, discriminação em locais de hospedagem, exposição a constrangimentos e, em casos mais extremos, ameaças à integridade física. "Daí a importância de orientar agentes de viagem e operadores de turismo com relação a quais destinos são mais abertos a receber os turistas desta população", alerta.
Por medo de sofrer lesbofobia, Raphaela se planejou, mas nunca conseguiu viajar sozinha com a namorada, apenas em grupo; Talita e Lívia passam por amigas e "tentam parecer menos lésbicas" em destinos como o Brasil e a Polônia; e Bruna e Flávia adiam há anos o sonho de realizar uma viagem de motor home. A Universa, elas falam sobre as tensões de planejar uma viagem com as namoradas:
"Mesmo pesquisando muito, não me sinto segura"
"Meu último relacionamento durou dois anos e nunca viajamos juntas e sozinhas. Eu sempre me senti muito insegura para fazer qualquer coisa com minha então namorada fora da rotina ou fora dos lugares que frequento no dia a dia porque, se até nos lugares que eu conhecia, eu passava por situações constrangedoras, como xingamentos, convites de teor sexual, imagine em um espaço que eu não conheço, com pessoas que eu não conheço, fora da minha zona de conforto.
Por medo, a gente perde experiências, perde parte da vida pública enquanto casal. É difícil, porque a gente acaba vivendo um relacionamento pela metade.
Chegamos a planejar viagens, pensar no orçamento, mas nunca viajamos sozinhas, sempre por conta desse impeditivo, pensando: 'Será que a gente vai se estressar? Será que vamos ser maltratadas? Será que vamos sofrer algum tipo de violência?' Por isso, acabamos sempre viajando para lugares bem próximos e em grupo, com amigos, e isso sempre nos atrapalhou bastante.
Em hotéis maiores me sinto um pouco mais segura, porque existe uma relação mais formal, funciona como uma empresa mesmo — depois do check-in é 'bom dia, boa tarde e boa noite', não precisa se expor tanto e nem criar vínculos com ninguém. Mas, em hotéis menores, mais familiares, ou Airbnbs, nunca tive coragem de ir com ela.
Mesmo pesquisando muito, nunca encontrei um comentário explícito de outro hóspede dizendo 'fui com o meu namorado e fomos bem recebidos', por exemplo. Sem uma avaliação neste sentido, não me sinto segura.
Acho que seria um grande passo para nós, pessoas LGBTQIA+, se fosse mais comum que hotéis e Airbnbs se apresentarem como 'LGBT friendly'. A gente se sente mais seguro por saber que não vai cair na casa de uma pessoa que apoia discurso de ódio ou que não está aberto a todas as formas de relacionamento, que pode ser violento numa fala ou numa atitude." Raphaela Magalhães é jornalista, tem 24 anos e mora em São Paulo
"Mesmo soltando as mãos, os olhares não paravam"
"Nós moramos em Dublin, na Irlanda, e aqui é muito tranquilo, apesar de ser um país bastante católico. A gente tem liberdade, anda nas ruas de mãos dadas, se beija, como qualquer outro casal.
Como eu 'saí do armário' aqui na Irlanda, foi um processo muito tranquilo, porque eu já estava num lugar que me acolhe muito bem. Mas foi muito difícil quando voltei ao Brasil pela primeira vez para visitar a minha família, e não podia andar de mãos dadas com a Lívia em todos os lugares. Aquilo não entrava na minha cabeça.
Mas foi em 2019, durante uma viagem a Portugal, que eu entendi, pela primeira vez, que não poderia circular livremente em todos os lugares. Fomos visitar minha melhor amiga, mãe do meu afilhado, numa cidadezinha a 20 minutos de Lisboa. Um dia, ela foi trabalhar, deixou meu afilhado com a gente, e decidimos levar ele para passear na praia, que era perto da casa. Enquanto a gente andava com o carrinho, as pessoas olhavam muito para a gente, com olhares de julgamento. Algumas vezes, dava para ouvir sussurros e ver os dedos apontando.
Soltamos as mãos, mas continuamos caminhando, e os olhares não paravam. Não entendi, porque poderíamos ser duas amigas andando com um bebê, mas depois percebi: meu cabelo na época estava curto e pintado de azul, e o da Lívia era raspado dos dois lados. Além disso, estávamos com uma canga com as cores do arco-íris em cima do carrinho. Mas demorei para perceber, porque são detalhes muito pequenos em Dublin.
Me senti desconfortável, incomodada, a ponto de não querer encostar na minha namorada na rua. Enquanto ficamos na cidade, fiquei pensando: 'O que posso fazer para parecer menos lésbica?'. Não deveria ser assim.
Antes disso acontecer, tinha comentado com a Lívia que a cidade era bonita e parecia um bom lugar para morar. Mas, depois, falei: 'Não quero ter nossos filhos aqui'. A partir daquele fato, comecei a pensar isso em muitos outros lugares que conhecemos, e percebi que, quando decidirmos sair da Irlanda, seja para viajar ou morar, não podemos escolher qualquer lugar. Temos que pensar: 'Esse lugar vai nos acolher? Vai acolher a nossa família?'.
Há países aqui na Europa que, se eu quiser conhecer, preciso pensar se meu cabelo está assim ou assado, se vamos parecer um casal ou se passamos por amigas. O lugar mais complicado que já viajamos foi para a Polônia, mas fomos com dois amigos héteros, então 'passamos despercebidas', só que foram dias sem dar as mãos em público — só uma vez, para tirar uma foto, quando não tinha ninguém por perto.
Até hoje, vamos para o Brasil com uma mentalidade de 'amigas', sabe? Dependendo do lugar em que estamos, não encostamos muito, não andamos de mãos dadas. Minha família mora na zona norte e a da Lívia na zona leste de São Paulo, não são lugares tão abertos quanto a região da Avenida Paulista, por exemplo.
Quando fomos para São Paulo da última vez, passamos um tempo com as nossas famílias, mas decidimos gastar mais para alugar um Airbnb perto do centro da cidade, onde a gente sabia que poderia se expressar mais livremente e teria menos chances de passar por algum problema." Talita Ferrari é relações internacionais, tem 28 anos, e mora em Dublin, na Irlanda, com a namorada, Lívia Machado.
"Por mais que a gente se prepare, ainda somos um casal de lésbicas"
"Eu e a Flávia temos o sonho de passar pelo menos um ano viajando de motor home. Ainda não decidimos o trajeto, se será pelas Américas, do Uruguai até o Alasca, só pela América do Norte, nos Estados Unidos e no Canadá, ou pela Europa — mas, em todos esses cenários, o que está nos impedindo é justamente o medo.
Além de sermos duas mulheres sozinhas viajando por muitas cidades diferentes, somos um casal, e sabemos que muitos parte desses lugares são preconceituosos.
Por mais que a gente se prepare, estude os trajetos, ainda somos um casal de mulheres lésbicas, e esse é um ponto que faz com que a gente adie bastante esse sonho, porque a gente tem bastante receio do que vai encontrar no meio do caminho.
No Brasil, já passamos por algumas situações bem constrangedoras, todas relacionadas a hotéis. Uma, em especial, aconteceu durante uma viagem pelas cidades históricas no interior de Minas Gerais.
Estávamos de carro e decidimos parar um hotel para dormir, porque estávamos cansadas de dirigir naquele dia. Não tínhamos feito reserva e paramos em uma pousadinha pequena. Na recepção, uma senhora, a dona da pousada, nos atendeu muito bem, foi bem simpática, e que nos arrumaria o melhor quarto da pousada.
Fui com ela até o quarto enquanto a Flávia pegava as malas no carro e vi que eram duas camas de casal. Ela disse que eu e minha amiga íamos adorar o local. Expliquei que não éramos amigas e sim casadas, e que precisaríamos de um quarto com cama de casal.
Ela me olhou com cara de reprovação e disse que a pousada estava cheia, que não tinha mais cama de casal. Detalhe: a pousada não tinha nenhum hóspede além de nós duas. Nós estávamos tão cansadas que a única coisa que queríamos era dormir, então acabamos ficando. Mas toda vez que a gente passava perto, ela colocava a mão no terço, que tinha pendurado no pescoço." ???????Bruna Andrade é advogada e vive em Belo Horizonte com a esposa, Flávia dos Santos, que é administradora.
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