Topo

Como série da Netflix, grupos promovem 'cura gay' no país. Prática é ilegal

Cartaz de divulgação do documentário "Pray Away" - Reprodução/Instagram @prayawayfilm
Cartaz de divulgação do documentário "Pray Away" Imagem: Reprodução/Instagram @prayawayfilm

Luiza Souto

De Universa

06/09/2021 04h00

Disponível na Netflix, o documentário "Pray Away" mostra como o grupo Exodus Internacional formado por religiosos que se classificam como ex-gays agia nos EUA para tentar convencer pessoas LGBTQIA+ de que elas precisavam se "curar". Para eles, não levar uma vida heteronormativa era um pecado a ser combatido.

O grupo original surgiu em 1970 e encerrou suas atividades em 2013, quando alguns de seus ex-líderes assumiram sua homossexualidade. Mesmo assim a chamada "terapia de reconversão sexual" segue ativa em outros países, inclusive no Brasil. O Exodus tem braço no país e, segundo o site oficial, um dos objetivos do grupo é "seguir padrões bíblicos para a sexualidade, integridade pessoal e profissional, e excelência no ministério". Os cursos de aconselhamento em sexualidade custam R$ 900 e são ministrados por profissionais diversos como psicóloga e psiquiatra.

Por dois meses, ela tentou a 'cura' com pastor, psicólogo e membro da Exodus

Um dos livros da Bíblia que em tese condena a homossexualidade é Romanos, do Novo Testamento, que considera a relação entre duas mulheres ou dois homens "contrária à natureza".

Evangélica desde criança, a gerente financeira Adriana Carla Alves e Silva, 46 anos, levou a interpretação ao pé da letra e buscou ajuda espiritual e terapêutica para "não ser mais lésbica" e chegou a tentar suicídio algumas vezes, por culpa por sua orientação sexual. Hoje, casada com Célia Pereira há cinco anos, vem passando pelo processo de aceitação com ajuda profissional fora da igreja.

Tudo que eu ouvia era que lésbica, sapatão, gay não prestavam, não era de Deus. Então tomei a decisão de ser missionária pela pressão social e comentários negativos que ouvia em casa sobre ser gay

Adriana mudou-se para o norte do país onde realizou trabalhos de evangelização com indígenas, mas envolveu-se com outras mulheres em segredo. Até que a conta chegou.

Adriana chegou a tentar suícido durante a terapia de "cura gay". Desistiu do processo e hoje é casada com Célia há 5 anos.  - arquivo pessoal - arquivo pessoal
Adriana (à direita) chegou a tentar suícido durante a terapia de "cura gay". Desistiu do processo e hoje é casada com Célia há 5 anos.
Imagem: arquivo pessoal

"Pensei em suicídio muitas vezes por sentir culpa por esse relacionamento. Depois de um tentativa mais prática que, ainda bem, não deu certo, procurei o pastor da minha igreja, que é também psicólogo, e fui fazer um curso no Avalanche Missões, que é um braço do Exodus, como última tentativa de 'reversão'."

"Eles constroem um caminho psicológico como se você tivesse sido abusada, sofrido problemas emocionais, e por isso se envolveu com uma mulher. E você ainda ouve 'ex-gays' dizendo que saíram daquilo, então acreditei que ia acontecer comigo."

Adriana ficou dois meses se orientando com o grupo, mas diz que o sentimento seguiu o mesmo. E veio novamente a tentativa de suicídio. "Não conseguia mais dormir e acordar sem me sentir culpada", conta. Então, a missionária procurou aconselhamento com uma amiga da igreja, que também era psicóloga e atuava com o Exodus.

Ela estava disposta a me fazer entender que eu podia escolher entre casar com um homem ou viver o celibato para não ofender a Deus.

Foi a gota d'água para a Adriana, que ouviu de outra amiga, que não era do grupo, o conselho que mudou sua vida. "Ela me disse para esquecer tudo o que havia aprendido até ali sobre religião e ter uma conversa honesta com Deus, perguntar se ela realmente tinha que deixar de ser lésbica. Senti uma paz muito grande no meu coração, e decidi viver a minha vida. Logo depois casei com minha atual companheira."

Adriana deixou a igreja que frequentava desde nova e conheceu o Evangelicxs pela Diversidade. E hoje, além de fazer terapia sem viés religioso, estuda Psicologia.

"Hoje me aceito 100%, mas muita dor não passou, como lembrar esse tipo de discurso, essa construção do que a gente ouve todo dia de discurso da igreja que acha que a gente não deveria existir."

Grupo acolhe pessoas LGBTQIA+ evangélicas

"Essas terapias de conversão/"cura gay" continuam causando estrago na vida de pessoas LGBTI+", afirma o antropólogo Flávio Conrado, um dos nomes à frente do Evangélicxs pela Diversidade, que visa acolher pessoas LGBTI+ evangélicas e promove debates e estudos abertos sobre a Bíblia e a homossexualidade em igrejas/comunidades que acolhem e assumem uma posição política e social em favor dos direitos humanos da Comunidade LGBTQIA+.

O grupo ainda oferece serviço de apoio à saúde mental. Gabriella Moreno, uma das psicólogas a frente do projeto Psis pela Diversidade, formado por profissionais que já atuavam na Evangélicxs afirma que com a pandemia o procura aumentou. "Com confinamento essas pessoas estavam passando por situações mais agudas de sofrimento por causa de perseguições de violências simbólicas da família. E elas ainda ficaram sem as redes que geralmente ajudam as pessoas fora de casa."

O grupo, formado por 6 psicólogos e psicanalistas, já atendeu, desde abril do ano passado, aproximadamente 25 pessoas em cinco sessões cada, por um preço simbólico, de até R$ 60. "A maioria que nos procura são jovens LGBTQIA+, dentro da faixa etária de 20 a 35 anos, e que levam questões ligadas à sexualidade."Algumas precisaram ser encaminhadas para consultórios particulares após essas consultas. A psicóloga atenta que nem todo profissional é LGBTQIA+ ou cristão, mas frisa que é importante ser sensível às duas questões, já que a maioria dos pacientes pertence a esses grupos.

Propor "cura gay" é proibido

Após a OMS (Organização Mundial de Saúde) retirar a homossexualidade da lista internacional de doenças em 1990, o CFP (Conselho Federal de Psicologia) começou a receber denúncias do Grupo Gay da Bahia de que psicólogos seguiam atuando para "curar" homossexuais, e em 1999 o órgão publicou resolução proibindo a prática.

Além disso, homofobia e transfobia tornaram-se crime após decisão do Supremo Tribunal Federal em 2019.

Mas a prática nunca parou, e em 2017 um grupo de psicólogos, o Movimento Psicólogos em Ação, entrou com ação civil pública e conseguiu uma liminar na 14ª Vara Federal do Distrito Federal que impediu o CFP de punir profissionais que atuassem em terapias de reabilitação. Uma das porta-vozes do movimento é a psicóloga Rozângela Justino, uma das fundadoras da Exodus Brasil, que já foi punida pela Justiça por práticas de "cura gay". O Conselho recorreu no STF (Supremo Tribunal Federal), e a ministra Cármen Lúcia derrubou a liminar em 2020.

"O que a gente precisa fazer é empoderar aquele sujeito para poder viver da melhor maneira", afirma Pedro Paulo Bicalho, que na época era presidente do CFP e hoje é conselheiro-presidente do CRP-RJ (Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro).

Para denunciar profissionais que oferecem a chamada "cura gay" basta procurar um Conselho Regional de Psicologia. E mesmo se o profissional alegar estar atuando dentro da igreja como membro, em prol da sua fé, ele é passível de processo ético. "Inclusive a maioria das denúncias que dizem respeito à prática acontece no interior das igrejas", acrescenta Bicalho.

Outro lado

Universa procurou por e-mail o grupo Exodus e o Avalanche mas não obteve retorno. Em texto publicado no site do Exodus, intitulado "Pray Away: Consequências de uma Teologia Equivocada", o grupo informa que "as Escrituras nos ensinam que Deus não exige mudança de orientação e comportamento sexual para nos receber como filhos e filhas que Ele ama. Em vez disso, a mudança que Deus apresenta a todos os seres humanos é a mesma: mudança de orientação espiritual —de mortos espirituais, desconectados Dele, para vivos espirituais, tendo o próprio Deus como orientação, motivação, inspiração e identidade."