Comparação, validação: como a pandemia mudou nossa relação com a beleza?
Os detalhes parecem aflorar quando estamos sozinhos. Pense nas reuniões presenciais do trabalho, nas quais nós prestávamos mais atenção aos assuntos em pautas e as imagens que tínhamos para ver eram as dos colegas ao redor. Com a chegada do isolamento, devido à pandemia de coronavírus, chegaram as chamadas em vídeo, em que a nossa própria imagem ganha destaque na tela. Nunca vimos tanto nosso rosto e estivemos tão sozinhos quanto nos últimos tempos. "De modo geral, a longa quarentena afasta o olhar do outro, suspende o tempo, e joga o olhar para dentro", conclui a pesquisa encomendada por Universa ao Studio Ideias, de São Paulo.
Segundo Flavia Romano Barbato, psicóloga clínica especializada em problemas de autoestima, medos e conflitos pessoais, as mulheres sofreram muito mais com o isolamento no que diz respeito à autoimagem.
"Após o caos sanitário, a cobrança estética, que já era enorme, duplicou, triplicou. Ao ficarmos expostas às reuniões por vídeo, é difícil não ficar se analisando, procurando defeitos enquanto encaramos as telas. Além disso, passamos mais tempo expostas aos aplicativos de redes sociais, consumindo imagens de rotinas irreais ou retocadas por outros editores de imagens", explica ela.
Segundo dados da plataforma Telavita, especializada em terapia online, a procura pela modalidade cresceu 400% do primeiro semestre de 2020 até o mesmo período de 2021. Cerca de 72% dos pacientes desta parcela são mulheres. "Muitas queixas são frutos de comparação. É aquela história de que 'a grama do vizinho é mais verde que a minha'. Na teoria, o acesso facilitado às informações deveria nos ajudar, mas o excesso de comparação acontece. O hábito é um gatilho para ansiosos, pois faz com que este e outros transtornos se intensifiquem, entre eles o Transtorno Dismórfico Corporal, relacionado a uma visão equivocada da própria imagem. É preciso cuidar", pondera Flavia.
O autocuidado ganha espaço em um mundo cheio de incertezas
"A pandemia encontrou as mulheres no meio de um processo de transformação", diz Camila Holpert, coordenadora da pesquisa de Universa, sobre a ascensão de processos transformadores sociais, como a luta pela diversidade de corpos e gêneros, por exemplo, nas redes sociais e meios de comunicação.
Com isso, muitos veículos e personalidades intensificaram a mensagem de liberdade da autoexpressão. Cerca de 74% das centenas de mulheres que participaram da análise afirmam que a relação com o próprio corpo mudou muito nos últimos cinco anos, e 72,5% se dizem mais livres para ter a beleza que querem.
Neste caminho, a busca por novos caminhos e novas estéticas cresceram. Em 2015, a busca pela palavra 'Contouring', o famoso contorno facial à la Kim Kardashian, teve seu pico de pesquisas no Google. No entanto, em 2018, a procura caiu 26%, enquanto a palavra 'Skincare' cresceu 19%. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), de janeiro a dezembro de 2020, este segmento de cuidados com a pele teve alta de 21,9% nas vendas, quando comparado com o mesmo período de 2019.
"Ao meu ver, nós estreitamos nossa relação com a informação de beleza e moda. Comparando com sete, oito anos atrás, tudo era um pouco raso. Hoje, você encontra tutoriais de vários produtos, consegue ver resenhas e opiniões diversas, sem contar as empresas menores que abriram suas portas e aumentaram a quantidade de produtos disponíveis, com preços menores e mais acessíveis para as classes mais baixas", defende a maquiadora Luciana Pesinato, que trabalhou por muitos anos dentro de grandes marcas de maquiagem, como Nars e Laura Mercier.
Na pandemia, especificamente, o acesso se uniu à necessidade e ao desejo. Enquanto algumas mulheres optaram por deixar de pintar os cabelos, outras aprenderam a fazê-lo sozinhas. O mercado de cuidados para a pele também cresceu, especialmente se comparado com o de maquiagem, que já apresentava ligeira queda.
"O isolamento social mudou toda a rotina e o comportamento dos brasileiros. Com as recomendações das autoridades de evitar saídas e os salões de beleza fechados, as consumidoras começaram valorizar rituais de beleza em casa. Vimos crescimentos interessantes em cuidados com a pele, com rotinas faciais e corporais, e coloração capilar em domicílio. Em contrapartida, houve impactos negativos em todos os nossos produtos de uso profissional e mercado de luxo, que naturalmente sofreram tendo seus circuitos de vendas fechados. A notícia positiva é que estes mercados já demonstram forte aceleração em 2021, com níveis de crescimento acima do que tínhamos no pré-pandemia", afirma Patricia Borges, CDMO da L'Oréal Brasil.
Ferramentas para fortalecer a autoestima
Ao menos 58,2% das entrevistadas pelo Projeto ELAS concordam com a afirmação de que a moda e a beleza são uma fonte de autoestima para a mulher, algo que a advogada Catarina Ribeiro comprova na própria rotina. Ela relata que se apegou aos rituais de beleza para tentar manter a sanidade, dar pausas. Também conta que foram fundamentais para sinalizar ao próprio corpo quando era hora de trabalhar e de descansar.
No Recife, onde mora, teve a oportunidade de trabalhar em formato remoto. "Não mudou muita coisa do que eu já fazia antes da pandemia. Continuei os mesmos cuidados, inclusive, me maquiando para ficar em casa. Faço isso para mim. É aquele ritual para separar o horário de descanso do de trabalho. Posso até estar de pantufas, mas gosto de usar make", diz a pernambucana.
A criadora de conteúdo digital Aline Zattar seguiu um caminho semelhante. Apropriou-se da moda para produzir inspirações para as seguidoras e abordar o próprio processo de aceitação corporal.
"Segui em um processo de construção da minha autoimagem com ainda mais força durante o isolamento social. Fiquei com a reflexão de que preciso ser verdadeira comigo mesma, gostar do meu 'eu' interno e cuidar dele e do 'eu' externo. A pandemia trouxe muitas crises de ansiedade, confusão mental, e essa conexão interior fez diferença. Busquei sobre meditação, terapia, mantras, para que eu pudesse me encontrar com a espiritualidade e também ajudar quem me acompanha nas redes sociais", afirma ela.
Cuidado com os espelhos externos
Houve ainda quem tenha questionado as próprias referências e tipos de influência que costuma seguir. Vidas perfeitas em meio ao caos passaram a incomodar, por exemplo. Para quem pôde e se permitiu, os meses desde o fatídico março de 2020 foram oportunidades para refletir e ressignificar a própria imagem.
"O encontro social é um lugar que funciona como forma de espelho. E, na falta do convívio, o que aconteceu com as referências de beleza, moda e autocuidado, uma vez que esses assuntos sempre tiveram pautados num ambiente social? Na pesquisa de Universa, descobrimos que, para algumas mulheres, esta fase significou a possibilidade de um reencontro. Por que eu gosto? Por que eu tenho ou deixo de ter determinado hábito? Questionamentos começaram a surgir nesse sentido", afirma Camila Holpert.
Como consumidora e alguém presente nas redes sociais, Aline Zattar concorda. "Desejo ver a diversidade como algo normal, com mais abrangência de peles, corpos, etnias, gêneros e várias outras categorias. Estamos em busca de novas formas de consumo, mais reais e sustentáveis, que se conectem com a nossa rotina real, sem cobranças fora do normal", defende.
"Sabemos que o ser humano convive com seus grupos e seus códigos de comunicação verbal e não-verbal, como a roupa e a maquiagem, por exemplo. Nós nunca estaremos completamente livres de uma estética ou de um padrão, porque sempre teremos a formação de novos grupos e vendedores de produtos para esses grupos", explica o antropólogo e terapeuta Darrell Champlin.
Para ele, é importante entender que padrões de comportamento e estética sempre existirão, mas que cabe a nós a construção de uma relação saudável com eles, de modo que não nos aprisione, a partir do senso crítico e do protagonismo das jornadas individuais de autoconhecimento.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.