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'Desrespeitaram meu trabalho, mas continuo fotografando mulheres negras'

Larissa Isis, fotógrafa e criadora da campanha "Cansei" - Caio Belasalma
Larissa Isis, fotógrafa e criadora da campanha 'Cansei' Imagem: Caio Belasalma

Larissa Isis, em depoimento a Anahi Martinho

Colaboração para Universa

19/09/2021 04h00

"Meu nome é Larissa Isis, tenho 34 anos, moro em São José dos Campos. Sou formada em nutrição, mas desde pequena me interesso por fotografia. Meu pai fez um curso de fotografia e tirou várias fotos analógicas da gente, então desde pequena já tive esse interesse. Quando me formei em nutrição, comecei a trabalhar fotografando alimentos.

Em 2015, fiz uma viagem para Nova York que mudou tudo. Lá, o negro estava em todo lugar. Aqui, a gente não tinha referência nenhuma de pessoas negras na mídia, na televisão, nas revistas. Parecia que aqui tinha uma porcentagem obrigatória de pessoas negras que tinham que aparecer na TV, nas novelas. Lá, o negro estava em todas as propagandas e outdoors.

Eu pensei: 'Vou voltar para o Brasil e começar a fotografar só gente preta'. Voltei e comecei a chamar amigas minhas, pessoas negras, para fotografar a beleza delas e criar minhas próprias referências. Comecei a fotografar o cotidiano, a beleza natural e simples das pessoas, nada muito enfeitado.

Na época, essas fotos chamaram atenção. Eram poucas fotógrafas negras fazendo isso. Posso arriscar dizer que fui uma das pioneiras.

Janaína Melo posa para a campanha 'Cansei' - Larissa Isis - Larissa Isis
Janaína Melo posa para a campanha 'Cansei'
Imagem: Larissa Isis

Em 2015, me veio a ideia do projeto "Cansei", a partir de conversas que eu tinha com minhas colegas. A gente dividia os mesmos cansaços, estávamos sempre desabafando sobre as mesmas coisas. Tipo: 'Estou cansada de ter que explicar o que é racismo, ter que explicar que não existe racismo reverso'. Independente do tom de pele, a gente sofria do mesmo mal, chorávamos as mesmas dores. Eram falas que, até certa idade, a gente normalizava. E não é normal. A partir desses desabafos, meus e das minhas amigas, comecei a fazer esse projeto, que são fotos de mulheres negras segurando placas em que relatam os seus cansaços.

Esse projeto viralizou de uma forma ruim. Foram mais de 30 mil compartilhamentos. Fizeram memes maldosos, racistas, misóginos com meu trabalho. Uma das mulheres fotografadas teve sérios problemas psicológicos por conta disso. Na foto, ela está segurando a placa com o cansaço dela e está usando dois pompons no cabelo, feitos do próprio cabelo. A pessoa criou uma imagem como se tivesse um pênis na cabeça dela, feito de cabelo.

Eu fiquei tão mal, desrespeitaram meu trabalho. Foi extremamente difícil lidar, durante três dias as pessoas me mandavam mensagens e eu não queria abrir meu celular para olhar. Fui atrás de advogados, mas eles disseram que eu teria que printar todas as imagens e comentários e ir no cartório. E era extremamente difícil para mim olhar todos aqueles comentários. Eu acabei deixando passar.

Hoje, sinto que consegui atingir o objetivo com esse projeto, que era meter o dedo na ferida. Muitas pessoas entenderam perfeitamente o que eu estava querendo dizer com aquele projeto. Mas mexeu bastante com as pessoas envolvidas.

Já fiz três exposições com esse projeto aqui na minha cidade. Com base nele, começaram a me chamar para outros trabalhos. Fiz um trabalho, por exemplo, para o Consulado Britânico, que eram fotos segurando placas também, sobre a diversidade. Abriu muitas portas para eu poder falar sobre esse assunto, sobre este cansaço que a gente sente, sobre esse racismo que as pessoas não acreditam que existe.

Muita gente ficou falando que era mimimi. O discurso é sempre esse, que é um mimimi. Foi muito pesado tudo isso. Até hoje existe uma página com essa publicação maldosa e muitos comentários. Ainda assim, faria de novo. Mesmo correndo um risco desse tamanho, eu faria de novo. As pessoas precisam aprender. E, de certa forma, algumas aprenderam.

Apesar de o projeto ser de 2015, seis anos depois ainda surgem memes racistas, um foi feito agora, em 2021. Infelizmente, ainda se fazem necessários projetos como esse para conscientização e empatia.

Teve muita gente que chegou até mim e falou: 'Nossa, Larissa, eu não sabia que se chamar uma pessoa de morena, ela pode achar ruim'. Então, deu para ensinar também.

Eu tinha a ideia de fazer uma segunda parte desse projeto com homens negros, mas não senti que esse momento chegou ainda. Não vai ser igual, segurando as placas, mas algo lembrando esse tema do cansaço também.

Hoje tenho total liberdade de viver só de fotografia. Em novembro de 2020, eu finalmente deixei meu trabalho CLT como nutricionista para focar somente em fotografia. Hoje tenho alguns projetos em mente, todos com essa função social, com ativismo. Continuo fotografando e levando mundo afora a beleza negra.

Com relação à representatividade de negros na mídia, sinto que melhorou muito desde quando eu comecei, mas ainda tem o que melhorar. Tem empresas que acordaram para isso, outras ainda não.

Tem empresas que trazem pessoas negras, mas não retintas. Trazem aquelas que são um pouco mais aceitáveis para o padrão da sociedade. E há também discrepância salarial entre os modelos negros e brancos nesse mercado de trabalho. Temos conhecimento de gente branca que faz esse mesmo trabalho e as negras ganham menos. Precisa melhorar muito ainda.

O que me motiva é esse racismo que nos desce goela abaixo todos os dias. Muitas pessoas ainda acreditam que ele não existe. A única coisa que eu posso dizer é que vou continuar fazendo esse trabalho e tentando reverter isso até o resto da minha vida. Mostrando a beleza da mulher negra e fazendo outras mulheres negras acreditarem nisso.