Educação menstrual: livro explica por que você precisa conhecer seu ciclo
Bia Fioretti passou por volta de quatro anos tendo menstruações muito espaçadas. "Chegava a menstruar uma vez a cada seis meses, uma vez por ano", conta em entrevista a Universa. Quando ia ao médico, ouvia que estava passando por uma menopausa precoce. Anos depois, percebeu que, na realidade, a amenorreia estava ligada ao fato de ter desenvolvido um distúrbio alimentar após ter dois partos traumáticos.
"Não precisava de hormônios, mas, sim, de tratar esse aspecto emocional", diz em conversa por vídeo. "Quanto tempo demorou para eu saber disso? Se falássemos mais sobre menstruação, eu não teria passado tanto tempo sem menstruar." Bia largou, então, a publicidade, campo em que trabalhava havia 25 anos, para estudar os ciclos femininos. E, neste ano, lançou o livro "Os Segredos de Alice no País das Maravilhas: uma Viagem Através do Corpo Feminino - Hormônios, Menstruação e Autoconhecimento", da editora Senac São Paulo.
Na obra, a ex-publicitária, que hoje também é doutora em Ciências em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em medicina interna e terapêutica pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autora da "Caderneta da Gestante", manual do SUS para o pré-natal, faz um paralelo entre a jornada da clássica personagem Alice pelo buraco do coelho e o processo que o corpo adolescente atravessa durante a puberdade até a menstruação.
O assunto vem a calhar: de acordo com pesquisa feita pela marca Sempre Livre com a consultoria Kyra, em 2018, 54% das mulheres entrevistadas sabiam muito pouco ou nada sobre menstruação no momento da menarca (primeiro fluxo menstrual).
"Meu propósito é transmitir conhecimento científico de forma lúdica e didática", diz a autora. "Se você conhece o seu corpo, o seu ciclo, você está no controle dele."
Bia promove workshops em empresas e em grupos de acolhimento de mulheres, mas a ideia de falar sobre menstruação para adolescentes veio de uma experiência pessoal com sua filha Lívia, que hoje tem 28 anos. "Ela sofreu bullying por ter tido uma menarca tardia", diz a escritora. "Como a criança lida com isso? Ela está passando por mudanças hormonais e, ainda por cima, há a escola."
O objetivo do livro é, segundo Bia, abrir um diálogo acolhedor com as adolescentes, mas também com pessoas que menstruam, de qualquer idade. Por isso, ela fala, em conversa com Universa, sobre como conhecer seu ciclo menstrual pode diminuir a vulnerabilidade, ajudar no processo de autoconhecimento e interferir --positivamente-- até na sua carreira profissional. Leia a entrevista a seguir:
Por que decidiu escrever "Os Segredos de Alice"?
Fui publicitária por mais de 25 anos e tive dois filhos. Ambos os partos foram muito ruins e isso me deixou traumas. Eu sofri, na época, o que chamamos hoje de violência obstétrica. Não porque os médicos eram maldosos, mas porque era o protocolo na época. Com esses traumas, comecei o projeto "Mães da Pátria", em que conversei com mais de mil parteiras profissionais e não profissionais. Queria fazer um resgate do feminino a partir do trabalho de mulheres que trabalham pelo bem-estar de outras mulheres. Entendi, nesse processo, que o trabalho da parteira é o bem-estar ampliado. Que, em comunidades indígenas, essas mulheres não cuidavam apenas da gestante, mas das meninas, desde a menarca, pensando no bem-estar delas até a menopausa. O conhecimento sobre a nossa menstruação é importante. Como uma pessoa poderia parir se ela não sabe sobre sua menstruação?
Por que é importante falar em educação menstrual?
Quando você entende e sabe nomear as partes do seu corpo, esse é um sistema de proteção que reduz a vulnerabilidade. Todo mundo está preocupado com a menstruação, sendo que há outros 23 dias do seu ciclo com os quais você não está se importando. Se você sabe em que fase você está, você pode ter mais controle do seu corpo. Ao não tratarmos do assunto, mulheres esperam chegar à idade adulta para descobrir coisas que podiam ter sido faladas na época da menarca. Depois dos meus partos, eu fiquei quatro anos sem menstruar. Os médicos disseram que eu estava tendo uma menopausa precoce. Mais tarde, percebi que tinha a ver com um distúrbio alimentar que eu havia desenvolvido depois de ter meus dois filhos. Se soubéssemos mais sobre a menstruação, eu não teria passado por isso.
E como surgiu a ideia de usar a história do clássico "Alice nos País das Maravilhas" como uma metáfora?
Minha filha sofreu bullying na escola por ter tido uma menarca tardia. Ela dizia que não era mais popular porque não tinha peito nem bunda. Uma vez, fiz uma festa de aniversário para ela e ninguém apareceu. E como um adolescente pode lidar com tudo isso? Essa criança está tendo que tratar de um novo corpo, os ossos crescendo, uma nova altura, um show de hormônios e, além de tudo, a escola. Comecei a entender que era necessário falar sobre estudos menstruais. Sou publicitária, então quis desenvolver uma metáfora para tornar as informações mais palatáveis. Foi quando pensei na Alice: por que ela nunca havia visto um coelho antes? Por que aconteceu naquele dia? Ela entra em uma caverna e não tem medo. É um processo que pode ser associado à puberdade. Uso essa metáfora há muitos anos em workshops para pessoas de todas as idades, mas quis transformá-la em um livro mais didático e lúdico.
"Os Segredos de Alice" é apenas para adolescentes?
O livro pode ser para qualquer pessoa que menstrua e ovula, não importa a idade. Ele serve como um manual de autoconhecimento. Porém, o foco é, principalmente, em adolescentes, pais e professores. As mudanças no corpo feminino, nessa época, são muito radicais. Uma criança tem o seu aparelho reprodutivo inerte, porque ainda não produz hormônios. Você tem aquela criança que você criou e consegue prever o que ela faz, mas então, do dia para a noite, algo começa a acontecer para fazer a reprogramação. Ao lerem o livro, os pais vão saber o que está acontecendo no corpo daquela criança. E podem estabelecer melhor a relação entre eles.
A menstruação ainda é um tabu no Brasil. Como ela deveria ser tratada?
Como fazer xixi, cocô e comer. É uma parte fisiológica do nosso corpo. Porém, no Brasil, ainda ligamos muito a menstruação à sexualidade. A criança que tem a sua menarca estaria despertando para a sexualidade. Mas não é assim. A menstruação continua a existir se a pessoa estiver ou não sexualmente ativa. E não falar disso com adolescentes é abandoná-los à própria sorte, correndo o risco de que alguém tire vantagem deles. As pessoas associam o sangue a algo sujo, dizem que tem cheiro. A menstruação, na verdade, nos ajuda a entender se está tudo bem com o nosso corpo. A cor dele mostra como pode estar a nossa saúde íntima. Se as pessoas tivessem mais contato com o próprio sangue, perceberiam que ele não fede se não for coletado por absorvente industrial, por exemplo. A gente se preocupa demais com a nossa aparência física, mas não olhamos para a nossa menstruação.
Quais são as principais dúvidas que as mulheres ainda têm sobre a menstruação?
Como o absorvente externo é o mais popular, as pessoas não costumam ter contato com seu sangue e o muco vaginal. Assim, não percebem a ovulação e quais são os mucos naturais. Não sabem perceber a fase da ovulação ou que hormônios estão trabalhando em cada fase do nosso ciclo. Isso permite que as mulheres sejam rotuladas. "Deixa ela, ela está com TPM", e a gente se cala. Não entendemos que podemos usar cada fase do nosso ciclo para conseguir determinados objetivos. Que cada uma delas têm uma vantagem que podemos aplicar em nossa vida profissional, por exemplo.
Você diz que há coisas boas e potencial em cada fase. O que uma mulher pode aprender com a TPM então?
A TPM diz muito sobre as pessoas porque ela nos mostra os limites. Durante a ovulação, o nosso corpo está cheio de hormônio e, por isso, estamos cheias de disposição. É um ótimo momento para começar projetos, já que conseguimos ver o macro com mais facilidade. É uma explosão e podemos construir vários sonhos e projetos que não precisam ter a ver com filhos. Depois, se não houve a fecundação, o seu corpo fez todo aquele esforço para preparar uma festa e ela não aconteceu. É quando chega a TPM, uma fase de desconstrução, que começa a trabalhar o seu nível de tolerância. Você fica mais perspicaz. Na TPM, você pode fazer a execução, a metodologia, a estratégia dos projetos que foram pensados na ovulação. É por isso que falo desse tema em empresas. É quando você estará mais focada em seus objetivos e vai entender o que quer e o que não quer.
É comum escutarmos que, na TPM, nós ficamos muito sensíveis. Você está dizendo que devemos, sim, levar em conta o que sentimos nessa fase do ciclo?
A gente demoniza a TPM, mas os desconfortos aparecem nessa fase porque entramos mais em contato com os nossos limites. Na ovulação, ficamos muito permissivas. Na TPM, nós baixamos a régua. Não é necessário tomar nenhuma decisão nesse momento, porque há, sim, o risco de ela ser impulsiva. Mas é uma fase importante para levantarmos as bandeiras vermelhas e acendermos um sinal de alerta. E o fato de que nos tornamos mais intolerantes incomoda os outros. A TPM não costuma incomodar a pessoa que a sente, mas os outros. É interessante quando você consegue entender isso e perceber como essa fase pode te ajudar.
Por que falamos pouco sobre menstruação sob esse ponto de vista?
É muito mais fácil vender remédio do que falar sobre menstruação e o lado bom de cada ciclo das nossas vidas. Quando uma pessoa não se conhece, se torna muito mais fácil ser convencida das coisas. Há distúrbios emocionais e físicos que podem ser potencializados nessa fase e é necessário que haja tratamentos para eles. Mas também há uma grande patologização da TPM e da menstruação.
Acredita que esse cenário está mudando?
Estamos falando mais, porém ainda é muito pouco. Estamos tratando mais sobre pobreza menstrual [falta de acesso a recursos básicos durante o período da menstruação], um problema de saúde pública, e a falta de conhecimento faz parte dele [Segundo a pesquisa "Impacto da Pobreza Menstrual no Brasil", encomendada pela marca Always e feita pela Toluna, 28% das mulheres do país já deixaram de ir à aula por não ter um absorvente menstrual]. Precisamos ajudar mulheres em situação de rua e no sistema prisional com absorventes, mas também é necessário educá-las sobre o ciclo menstrual. E há, ainda, o recorte de gênero: há homens transgênero que menstruam. Eles também precisam ser incluídos nessa discussão. E a gente também precisa refletir sobre o impacto dos absorventes no meio ambiente: um dos maiores poluidores do mundo são os aplicadores de absorvente interno. A pobreza menstrual passa por todas essas questões.
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