Da maquiagem às unhas: aéreas são condenadas por exigir padrões sem custear
No Brasil, companhias aéreas exigem de funcionários homens e mulheres regras rígidas em relação à aparência. A lista no segundo caso, porém, é bem maior, e inclui lápis, máscara de cílios, sombras, batons e esmaltes — mas de cores limitadas, sóbrias. Para as empresas, como o uso dos itens já é costumeira no que chamam de "universo feminino", não há necessidade de restituir as funcionárias por esses custos. Mas decisões judiciais têm contrariado esse entendimento.
Em setembro, a Gol foi condenada pela Justiça do Trabalho — em uma ação coletiva movida pelo MPT (Ministério Público do Trabalho) — justamente por obrigar as funcionárias a seguirem padrões de aparência sem arcar com auxílio financeiro para tal. A decisão exige o pagamento de R$ 220 mensais para cada aeronauta (funcionárias de voos, como comissárias) a contar do ano de 2015 em diante.
A companhia também terá que pagar uma indenização de R$ 500 mil por dano moral coletivo por "discriminação de gênero" e "minoração salarial feminina" — já que os homens gastariam menos com aparência, o salário estaria desigual. A decisão foi em primeira instância e a empresa pode recorrer. Procurada pela reportagem, a Gol se limitou a dizer que não comenta decisões judiciais.
Segundo Clauver Castilho, diretor do SNA (Sindicato Nacional dos Aeronautas), que participou da ação, a iniciativa de iniciar o processo judicial surgiu do MPT, que percebeu diversos processos individuais de mulheres nesse tema e consultou o sindicato sobre o dia a dia das comissárias.
"Confirmamos que essas exigências são comuns e sem amparo financeiro. A aviação ainda vê a comissária como uma boneca, que tem que estar linda para servir o passageiro", diz.
A questão é que ainda se vê o estar maquiada como inerente à função. É obrigatório, passa a ter punições, elas recebem advertências. Se é uma obrigação, a empresa precisa fornecer os produtos e serviços."
Como apontou Castilho, as informações que chegam ao sindicato sobre queixas de mulheres obrigadas a seguir um padrão de aparência são constantes e fazem parte da rotina de todas as profissionais — em diferentes empresas, não apenas a Gol.
'Costumes' das mulheres
Universa acessou alguns processos individuais disponíveis nos sites dos tribunais regionais do trabalho dos estados. Mulheres de cidades e companhias diferentes passam pelos mesmos casos e relatam situações parecidas. "É uma cultura", afirma Castilho.
Em uma das ações, cuja sentença em segunda instância saiu em 2019, uma comissária de São Paulo processou a TAM e a empresa alegou que 'o cuidado com a aparência, incluindo o uso de maquiagem, constitui um dado cultural e é típico do universo feminino, integrando de forma geral a rotina e os costumes das mulheres'.
Além disso, afirmou que não havia exigência, mas recomendações. Mesmo assim, foi condenada a pagar R$ 100 por mês.
Em outra sentença em segunda instância de 2017, também de uma comissária de São Paulo contra a TAM, colegas de trabalho que foram testemunhas no processo afirmaram, em depoimento, que "se a comissária se apresentar sem maquiagem, é retirada do voo".
Procurada, a empresa afirmou que "adota uma política de obrigatoriedade somente para itens fornecidos pela empresa — no caso os uniformes — como parte de sua identidade de marca, sempre buscando respeitar a diversidade de seus funcionários".
Advertência por cutículas
"As unhas não devem exceder o comprimento médio. Os esmaltes podem ser cremosos ou cintilantes. Está permitido o uso somente de base. Tonalidades permitidas: branco, bege claro, marrom claro, nude e francesinha com esmaltes brancos. Não é permitido o uso de adornos nas unhas. Os esmaltes cremosos exigem maior atenção no retoque, portanto, as colaboradoras devem estar atentas a este detalhe, tendo consigo o esmalte aplicado para eventuais retoques."
Por não seguir esse item do "guia de imagem pessoal" enquanto era funcionária da Gol, no aeroporto de Cofins, em Belo Horizonte, a aeroviária Michelle Pinheiro, 40, recebeu uma advertência verbal. Não poderia ter se apresentado ao trabalho com as unhas pintadas de vermelho.
Em outro momento, também foi advertida por conta de suas cutículas. "Me senti incomodada, mas a euforia de trabalhar em uma companhia aérea me fez relevar certas exigências na época", diz.
Contratada da companhia de 2009 a 2016, abriu um processo em 2019 e, neste ano, ganhou a causa em segunda instância. Para ela, decisões como essa mostram que as empresas precisam rever as exigências feitas às mulheres.
Tem que parar de padronizar as pessoas como máquinas perfeitas e respeitar sua individualidade. É frustrante saber que em pleno 2021 tais direitos tenham de ser discutidos. Por outro lado, é importante mostrar que, mesmo a passos lentos, estamos evoluindo"
Especialistas em direito trabalhista e em processos de aeronautas e aeroviários, os advogados José Avelino Esteves e Daniel Avelino Paiva, responsáveis pelo caso de Pinheiro, explicam que, para uma mudança mais significativa no cenário atual, é preciso que os sindicatos pressionem as empresas para que paguem os valores referentes aos gastos com aparência.
Ou que as empresas revejam seus conceitos sobre o padrão de beleza estabelecido. "Não é uma questão de higiene ou limpeza. O que fazem hoje é submeter às mulheres, que precisam desse emprego, ao que a empresa considera 'bonito'", afirma Esteves.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.