Marília Arraes e a violência na política: 'Colocaram meu nome em vira-lata'
Só essa semana, o machismo na política foi assunto no Brasil duas vezes: na última terça-feira, Wagner Rosário, ministro da CGU, chamou a senadora Simone Tebet de "descontrolada" durante a CPI da Covid. No dia anterior, o ator José de Abreu, repostou um tuíte que dizia ter "vontade de dar soco" na deputada Tabata Amaral. Mas, segundo a deputada federal Marília Arraes (PT-PE), reações misóginas fazem parte da vida das mulheres na política desde sempre. "A violência de gênero vem desde Cleópatra. Fazem isso quando mulheres atingem certo patamar de liderança", afirma, citando a monarca do antigo Egito, em conversa por vídeo com Universa.
Aos 37 anos e há 14 na política, três vezes eleita vereadora em Recife e no primeiro mandato como deputada federal, Marília diz acumular inúmeros ataques misóginos. Os últimos aconteceram nas eleições do ano passado, quando disputou a prefeitura da capital com João Campos (PSB), 27, filho de seu primo Eduardo Campos. Durante a campanha, foi chamada pelo adversário de arrogante a anticristã. "Não tenho relação familiar [com João Campos] há muitos anos, e não é um primo legítimo. Gostam de fazer sensacionalismo com parentesco", ela afirma. Marília foi derrotada por 52,27% dos votos válidos ante seus 43,73%.
Os laços ficaram estremecidos de vez em 2014, quando Marília, ainda no PSB, apoiou a reeleição de Dilma Rousseff (PT) em detrimento de Eduardo Campos - que morreu em um acidente aéreo ainda durante a campanha. Além das inúmeras críticas e ameaça de expulsão da legenda, criada pelo avô, o ex-governador Miguel Arraes, teve o nome dado a uma cachorra achada na rua por militantes do partido. E viu os muros da cidade, incluindo o da casa da avó materna, pichados com xingamentos como "traidora".
Enquanto aguarda o PT decidir se lançará candidatura própria ou apoiará o PSB ao governo do Estado no ano que vem —e se escolherá seu nome para disputar o cargo —, Marília conquistou vaga na segunda secretaria da Casa —à revelia do próprio partido, que indicou o deputado João Daniel (PT-SE), e viu seu programa destinado à proteção e promoção da saúde menstrual aprovado no Senado por unanimidade.
Grávida de Bárbara, sua segunda filha, prevista para nascer em janeiro, Marília fala a seguir ainda sobre licença-maternidade diferenciada para parlamentares, seu projeto de pobreza menstrual e mais.
UNIVERSA - Você sofreu ataques pessoais durante a campanha municipal de 2020, e temos visto mesmo mais mulheres na política sendo atacadas. Como você lida com a violência de gênero?
Marília Arraes - A violência de gênero vem desde Cleópatra. Fazem isso quando mulheres atingem certo patamar de liderança. Nas eleições de 2020, realmente fiquei um pouco abalada emocionalmente, mas não entro nesse mar de lama que fazem, até porque, infelizmente, acabei me acostumando a esse tipo de agressão.
Em 2014, quando apoiei a presidente Dilma para a presidência, picharam a cidade toda e até a casa da minha mãe com palavrões e ofensas a mim.
No comitê do atual governador [Paulo Câmara, do PSB] colocaram uma cadela vira-lata com o nome de Marília. Minha avó, uma religiosa de 90 anos, ficou chocada com o comercial que saiu e que falava que eu não respeitava a palavra de Deus. Isso me atingiu até mais. Quando é com a família da gente, é pior. Eu dava graças a Deus todos os dias por minha filha [Maria Isabel, de 6 anos] não estar no colégio na época para não ter que responder à provocação de coleguinha.
Essa foi uma disputa familiar, entre primos. Como ficou a relação entre vocês?
Não tenho relação familiar há muitos anos, e não é um primo legítimo. Gostam de fazer sensacionalismo com parentesco. Tem ainda uma diferença de idade, não houve nenhuma convivência na infância, então não mudou em nada.
Nunca encarei a política como um assunto de família, tanto é que eu estou no Partido dos Trabalhadores. Agora, sou neta de Arraes e estou na política muito pelo que aprendi com ele.
Me orgulho muito, mas nunca fiz disso um trampolim. Me inspiro na história dele e posso fazer isso porque sou a neta mais velha e era muito próxima a ele.
Pernambuco nunca teve uma governadora mulher, apesar de você ter colocado seu nome à disposição tanto em 2018 quanto para o ano que vem. Há uma desconfiança em cima do seu nome por ser mulher?
Essa é uma decisão do partido, como foi em 2018, quando estava pontuando bem. Continuo tentando aglutinar forças em torno desse projeto. E não acho que haja desconfiança. Não é somente pelo fato de ser mulher. Não é assim.
Só que o método e a forma como as coisas são feitas, e as decisões tomadas são diferentes porque eu sou mulher, sem dúvida alguma. Por exemplo. Um homem, pontuando bem nas pesquisas ou não, tem uma participação diferente nas decisões. Em 2018 eu já tinha força política, e agora sou deputada federal, então essa inclusão da gente na discussão nos espaços de decisão dificulta pelo fato de ser mulher.
Quais as soluções para aumentar a participação de mulheres na política?
Eu costumo sempre dizer que há muita crítica ao Parlamento, mas ele é o reflexo da sociedade. Tem poucas mulheres pois muitas vezes elas sequer têm a chance de pensar em querer ocupar esses espaços, porque para a gente é tudo muito mais difícil: a carga mental, do trabalho doméstico, e tem também toda essa violência de gênero a qual a gente é suscetível quando está na política.
Isso acontece desde sempre, só que a partir de pouco tempo para cá é que a gente começou a poder reclamar. Digo isso porque eu estou na política há quase 14 anos, e quando comecei como vereadora na cidade do Recife sequer tinha banheiro para mulheres.
Somente quatro mulheres se elegeram na história do Estado como deputadas federais, nunca teve uma senadora e governadora. Mas eu tenho que reconhecer que houve alguns pequenos avanços como a ideia do fundo partidário.
Normalmente, quando a mulher chega lá, é porque é esposa ou filha de alguém. Nunca reconhecem o seu mérito. Aconteceu com você?
Falam isso das mulheres, mas também tem muito homem na política que é "filho de". Passo por isso até hoje. Muitas vezes referem-se a mim como neta de Arraes, e não citam nem meu nome. Sempre vão justificar que você está ali por algum motivo que não seja por seus próprios méritos. A gente precisa trabalhar isso na cabeça para não ser engolida por essas e outras violências. É a síndrome da impostora, né?
Ano passado vivi uma campanha onde nunca uma mulher tinha ido para o segundo turno da eleição, e foi violentíssima. Muitas vezes me perguntavam como eu estava aguentando, e respondia que tinha que suportar e mostrar força para outras mulheres
A Câmara dos Deputados aprovou recentemente seu projeto de lei que prevê a distribuição gratuita de absorventes a mulheres de baixa renda e em situação vulnerável. Quais os próximos passos e como se dará essa distribuição?
O próximo passo é a sanção presidencial, e a gente espera que aconteça, porque foi uma pauta praticamente unânime nas duas Casas num momento de polarização.
Foram três anos de negociação. Se tivesse mais mulheres nos espaços de poder de decisão a gente não precisaria nem estar discutindo isso.
Existe uma previsão da inclusão do absorvente na cesta básica, e também distribuição nas escolas para meninas de baixa renda, para mulheres em situação de rua, as encarceradas que cumprem medida sócio-educativa.
O detalhamento de como vai ser feito é feito pelo Poder Executivo.
Como era sua relação com a menstruação? Era um tema falado abertamente na sua casa?
Eu acho que minha mãe até se esforçava, mas é algo que não depende somente da família, mas da sociedade. Sempre interessa a alguém que alguns assuntos sejam mantidos em segredo.
Quando a gente estava debatendo esse projeto, alguns colegas se sentiam constrangidos em falar a palavra menstruação, absorvente, de falar sobre o assunto. E quando eu propus pela primeira vez no Congresso, o projeto virou chacota nas redes sociais.
Se fala muito da reprodução da mulher, mas o dia a dia delas normalmente é muito negligenciado. Isso porque não tem tantas pessoas que vivam isso lá tomando as decisões e pensando políticas públicas necessárias.
Você está grávida de mais uma menina. Teme que suas filhas encontrem um mundo em que o número de violência contra a mulher tenha aumentado ainda mais?
Não. O que passa pela minha cabeça é que eu tenho que preparar minhas filhas para saberem se defender, mais do que eu soube. Pelo menos até a nossa geração, a gente demorou muito para saber dizer não, a se expor e denunciar. Não teve gente para me ensinar essas coisas.
Aos 6 anos, a Maria Isabel já tem uma ideia de como deve ser, e como me vê como um exemplo não fica difícil de visualizar o que é ser uma mulher independente, que exerce uma posição de liderança. É essencial conversar com as crianças, ensinar o que é o toque, onde pode ou não pegar, o que é privacidade e intimidade, porque quando ela notar alguma coisa diferente, ela vai te contar.
De que forma a maternidade influenciou na sua carreira?
A maternidade muda a vida da gente, né? Às vezes eu até fico tentando lembrar como era minha vida antes de ser mãe. Já disputei cinco eleições, três desde que fui mãe. E a cada dia busco força, porque eu sei que estou fazendo para o futuro delas. E explico isso quando estou ausente, quando preciso viajar. Ela reclama da ausência, quando tenho que ir para Brasília. É muito difícil, mas sem dúvida dá mais gás para conquistar o que precisa para que elas vivam num mundo melhor.
Como será a sua licença-maternidade?
Estou tentando levar esse tema para a discussão na mesa diretora, porque se for observar nós, deputadas, temos quatro anos de mandato e se ausentar por seis meses é complicado. E se você não quiser viver em Brasília, já é obrigada mesmo a se ausentar por dois meses, porque a partir de 28 semanas não pode mais andar de avião.
Então tem que ser discutido como fazer isso, se pode ficar em trabalho remoto para não se ausentar totalmente. Inclusive, no site da Casa, não aparece "licença-maternidade", mas "falta justificada". É um absurdo. [Após uma requerimento deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) a Câmara deve passar a incluir licença-maternidade nos painéis de votações] Não acho que não tem que tirar a licença, mas deveria poder optar por continuar trabalhando de maneira remota ou híbrida, porque é meio ano para 4 anos. Os homens, quando querem ser pais, não precisam deixar o mandato por meio ano.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.