Vítima de João de Deus: 'Deixá-lo em prisão domiciliar é convite ao crime'
A administradora de empresas de São Paulo Andrea Mannelli, 41, é uma das cerca de 500 mulheres, segundo contagem do Ministério Público, que denunciou João Teixeira de Faria, o João de Deus, por crimes sexuais. Em 2010, ela foi à Casa Dom Inácio de Loyola com a família em busca de uma cura para a mãe, que havia descoberto um câncer. Foi levada a uma sala reservada, a pedido de Faria, e estuprada por ele. Enquanto chorava, ouvia o médium dizer, gritando: "Você quer que sua mãe morra? Então pare de chorar, colabore, se não ela vai morrer."
No dia 14 de setembro, a Justiça concedeu um habeas corpus para que Faria cumprisse pena em prisão domiciliar por questões de saúde e, entre outros motivos, não ter ocorrido novos crimes. Trata-se da execução de pena de algum dos processos já julgados pela Justiça, sem relação com a história de Andrea. Ela e outras quatro vítimas aguardam a sentença, que já ultrapassou o limite de dias dado pelo juiz desde a última audiência e sairá a qualquer momento.
Foi nessa audiência, inclusive, que Andrea reviu Faria ao vivo, pelo Zoom, pela primeira vez desde 2010. "Pedi para participar, era o momento do interrogatório dele, quando seria questionado por seus atos. Queria ver o que tinha para dizer sobre meu caso", afirma, com a convicção de quem conseguiu racionalizar um trauma.
"Mas ainda tenho a cicatriz. Ela dói quando vejo uma decisão como a da prisão domiciliar. Me sinto violentada, mais uma vez. Mas, nesse caso, pela Justiça. O lugar dele é no cárcere, não em casa, como eu", diz ela, uma das mulheres que participam do documentário "João de Deus: Cura e Crime", recém-lançado pela Netflix.
Apesar da dor, Andrea não sofreu nem chorou após a sentença. Ligou para sua advogada, Luiza Nagib Eluf, referência na área de direitos das mulheres, e perguntou o que poderia ser feito para revogar a decisão. Infelizmente, respondeu a jurista, nada, por se tratar de outro processo. "Estou sempre pensando em como agir. Por muito tempo, depois do abuso, eu me perguntava: Por que comigo? Com os anos, mudei a pergunta. Agora é: O que eu posso fazer para que ele seja punido?"
O advogado de Faria, Anderson Van Gualberto de Mendonça, foi procurado pela reportagem por e-mail e por telefone, em seu escritório. Por meio de sua secretária, disse que "não tem nada a acrescentar" sobre o assunto.
UNIVERSA - A mudança de regime de João Teixeira de Faria, apesar de não ter relação com o seu processo diretamente, te abalou enquanto vítima?
Andrea Mannelli - Sim. Hoje posso dizer que estou estruturada, consigo falar sobre o que passei. Mas tem a cicatriz, que dói principalmente quando a Justiça não cumpre seu papel, como no caso dessa decisão judicial. A Justiça tem que trabalhar com fatos e com leis, e é um fato consumado que ele é um réu condenado, 65 anos de prisão, e 59 em regime fechado. Quando a Justiça solta, não está cumprindo com aquilo que ela mesma determinou. O que achamos que pode ter acontecido é que, em um dos processos dele, havia condenação em prisão domiciliar, pode ter sido aí que conseguiram o habeas corpus. Mas é preciso ver o indivíduo como um todo. É como se ele estivesse numa posição de igualdade de pessoas que não cometeram crime já que está em casa, como eu.
Pretende fazer algo em relação a essa decisão?
Eu queria, mas não tem o que fazer porque são outros processos, sem relação comigo. A primeira coisa que fiz quando vi a notícia foi ligar para a minha advogada perguntando, e aí ela me explicou. Mas pensei até em fazer abaixo-assinado. Cheguei à conclusão que, já que não daria para fazer nada, iria procurar a mídia, as redes sociais, para mostrar minha indignação. Saber que você foi violentada por um cidadão e esse cidadão é tratado com privilégio, me sinto violentada de novo, agora pela Justiça. Deixá-lo em regime domiciliar é um convite ao crime. E se estiver atendendo alguém? Quero ser reconhecida pelo Estado como vítima e quero que o Estado puna ele por um crime hediondo, que foi o que cometeu comigo. Quero ele no cárcere.
Por que é importante para uma vítima ver o agressor condenado?
Porque se não punir corretamente esse agressor é passada uma mensagem minimizando a dor da mulher. É como se dissessem: 'O que você sofreu não é nada, não é tão grave'. E também é preciso ser pedagógico para a sociedade. Falta informação, as pessoas não sabem lidar com uma vítima de estupro, já começam a julgar, criam preconceitos em relação ao que a mulher sofreu.
Que tipo de julgamentos você ouviu?
Muita gente questionava por que as vítimas tinham voltado lá, nos culpando pelo crime. Eu cheguei a ouvir que ele "estupra, mas cura". São ideias que precisam ser aniquiladas. Só vamos conseguir mudar isso quando nós, como sociedade, atuarmos de forma justa. Se não tem Justiça, vai ter um próximo caso porque o agressor vai pensar que as denúncias não dão em nada.
Qual a situação do seu processo?
Estou aguardando a sentença. No processo estão meu caso e de outras quatro mulheres. A última etapa foi no começo de junho, quando teve audiência com o João Teixeira, ele foi interrogado. Pedi para participar porque queria ouvir o que ele tinha para falar sobre o que fez comigo. Dali, havia o prazo de 50 dias para a sentença, que seria no fim de agosto, mas ainda não saiu. Deve sair a qualquer momento.
Rever João Teixeira de Faria não te trouxe desconforto?
Não. O que vi foi uma pessoal em total despreparo com a realidade. Ele falava que queriam tirar o dinheiro dele, que tinha uma organização contra ele, que queriam matá-lo na cadeia, mas não respondia às perguntas do juiz sobre as denúncias. Perguntavam: 'Conhece a vítima tal?'. Ele respondia que acreditava em Deus, sempre fugindo do assunto. Era uma esquizofrenia de palavras.
Qual sua relação com as outras vítimas?
Eu criei o grupo jurídico Somos Muitas, com algumas vítimas, logo depois de termos feito uma reunião com o Ministério Público de São Paulo, quando começamos a fazer as denúncias. Conversávamos para pensar em uma estratégia para poder enfraquecer o João. Nos unimos para pedir uma indenização por danos morais, por exemplo, para enfraquecê-lo financeiramente [a ação foi indeferida por ter prescrito]. Ainda conversamos hoje, falamos sobre a situação dos processos, sobre as audiências. Também sou diretora do Instituto Justiça de Saia. Durante a gravação do documentário da Netflix me aproximei da promotora Gabriela Manssur, que fundou o instituto. Sou líder e atuo no acolhimento.
Você teve medo de expor seu trauma para um público tão grande como o que verá o documentário recém-lançado pela Netflix sobre o caso João de Deus?
No começo das gravações, tive receio e dei meu depoimento de forma anônima. Vi o primeiro take e pensei que não estava bom, ninguém ia se sensibilizar com a imagem do meu cabelo. Eu me questionava como iria amplificar minha voz se não mostrasse quem eu sou, com minhas fragilidades, dores, meu trauma, o que sofri. A violência de gênero tem voz, tem rosto, tem cor. Resolvi aparecer. Depois do documentário, muitas mulheres começaram a me escrever nas redes sociais, de casos variados, pedindo ajuda. É minha maior satisfação, alcancei meu objetivo. Quero mandar a mensagem de que há esperança, é possível recomeçar, que existe uma possibilidade. Quero que as pessoas conheçam João de Faria e seu centro de tortura.
O que diria para uma vítima de crime sexual?
Saber lidar com o problema emocional que a violência sexual gera é um processo longo, tortuoso, não é fácil. Mas tem esperança, dá para ser feliz. A vida não pode ser resumida no que agressor fez com você, mas no que você decide fazer com ela. Eu diria para todas essas vítimas que assumam, enfrentem, se apropriem da dor. Essa dinâmica que vai te fazer caminhar. Fale com alguém, um amigo, um familiar e, se puder, denuncie. E que seja no seu tempo. Eu levei nove anos para denunciar, e só fiz isso quando achei que estava em uma posição de segurança. Mas denunciem, mesmo que o crime tenha prescrito. Isso pode gerar uma mudança no futuro. E também não fique presa no papel de injustiçada. Fazer a sua parte, procurar a polícia e a Justiça, é importante para a própria vítima ter um entendimento do problema, torná-lo aparente.
Qual a sua relação com Deus hoje?
Acredito que existe um deus. Eu me perguntava: 'Onde estava Deus quando eu estava naquela sala?'. Saí de lá sem fé, em nada nem ninguém. Por muito tempo permaneci nessa forma. Quando fiquei grávida do meu filho, em 2011, eu queria ser a melhor mãe que ele pudesse ter e, para que isso acontecesse, eu precisava estar bem. Meu filho, de certa forma, me salvou. Ele me fez ter essa força, me fez acreditar que eu poderia ser feliz. Ali eu vi que Deus existia e que estava conversando comigo.
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