'Por medo, me escondi': mulheres surdas contam como aceitaram deficiência
Se quando você pensa em uma pessoa surda imagina alguém que não escuta absolutamente nada e usa língua de sinais para se comunicar, saiba que apenas 34% dos brasileiros com algum grau de surdez se encaixa neste perfil, segundo dados de 2019 do IBGE.
A maioria de nós, surdos, consegue ouvir sons (com graus de dificuldade que variam entre leve, moderado, severo e profundo) e somos oralizados, isto é, conseguimos nos comunicar através da fala, como pessoas que não são surdas. Em outras palavras, somos "surdos que ouvem" — o termo pode parecer controverso, mas foi cunhado em 2017 pela ativista Paula Pfeifer e dá nome à larga parcela de pessoas que têm essa deficiência invisível.
No meu caso, a surdez diagnosticada aos 10 anos, mas que provavelmente já me acompanhava em antes desta idade, me impede de ouvir sons mais agudos, identificar alguns tons da voz humana e a direção dos barulhos. Durante a pandemia, quando todos passaram a usar máscaras de proteção, também dificulta muito qualquer conversa fora de casa, já que dependo muito da leitura labial para me comunicar — esta, aliás, é uma das maiores queixas de pessoas surdas desde que o vírus chegou ao Brasil, há um ano e meio.
Neste Dia Nacional dos Surdos, Universa reúne relatos de outras quatro mulheres que, como eu, decidiram "sair do armário" da da surdez após anos escondendo a deficiência, seja por vergonha de se apresentar como PCD em uma sociedade capacitista ou preguiça de explicar suas dificuldades.
"Armário da surdez é de vidro"
"Quando soube que tinha uma deficiência, aos 16 anos, entrei em pânico. Por entender o olhar da sociedade a respeito de pessoas com deficiência — que são inferiores, incapazes, inválidos — e ter uma deficiência invisível, eu me escondi. Não queria ser diferente e nem julgada por algo que fugia do meu controle.
Mas o 'armário da surdez' é de vidro: você acha que está escondendo, mas os outros percebem a diferença na sua voz e todos os momentos que você deveria ter ouvido, mas não ouviu. No fim das contas, é enganar apenas a si mesmo.
O processo de aceitação da surdez é muito individual. Eu estava cansada de fingir ser alguém que eu não era. Isso gastava toda a minha energia e me colocava em situações desconfortáveis o tempo todo.
Tudo mudou quando criei o site Crônicas da Surdez e contei para o mundo inteiro que era surda. Foi incrível, recebi muito apoio, milhares de mensagens, e o site se tornou ponto de encontro para pessoas surdas do Brasil inteiro.
Hoje, o foco do meu trabalho é ajudar as pessoas a saírem do 'armário da surdez' o mais rápido possível. O processo de aceitação requer muita reflexão e uma desconstrução do que pensamos e sentimos sobre PCDs.
Deficiências têm a ver com recomeços, adaptações e reconstruções. E, quando você tem uma deficiência, precisa se posicionar em inúmeras situações e provar a sua capacidade, o seu valor, constantemente.
O senso comum acredita que só é surdo quem não ouve nada e que todo surdo usa língua de sinais. A surdez é uma deficiência invisível e um surdo que ouve quebra o estereótipo padrão da surdez. Isso dá um nó na cabeça das pessoas e elas chegam a achar que você está fingindo a deficiência." Paula Pfeifer é cientista social, escritora e palestrante, tem 40 anos e mora em São Paulo.
"Quando decidi falar, minha vida mudou"
"Recebi meu diagnóstico aos 4 anos. Sempre tive receio de alguém pensar que eu poderia me aproveitar da surdez para alguma coisa, isso sempre me incomodou e com certeza foi um dos motivos para que eu demorasse tanto para me posicionar [Benedita falou abertamente sobre a surdez para o público há cerca de dois anos, pela primeira vez].
Quando entendi que tantas situações que eu vivi ao longo da vida tinham nome, tudo fez sentido. O capacitismo tem várias camadas — tem aquele mais explícito, na cara, mas tem outros bem sutis, mais escondidinhos, que às vezes a gente não percebe.
Eu tinha vergonha do que o outro ia achar, preguiça de explicar e medo de ser tratada diferente. Depois, com o tempo, entendi que eu estava errada. Mas cada um tem o seu processo. Hoje, entendo que o diálogo é a maior ferramenta de transformação que existe. Se posicionar, conversar, colocar para o outro qual é a melhor maneira dele se comunicar com você.
Quando eu decidi falar, minha vida mudou completamente. As pessoas começaram a entender o que elas poderiam fazer para melhorar a nossa comunicação. Expliquei: 'Olha, facilita se você falar olhando para mim'. 'Eu não consigo fazer leitura labial num ambiente escuro'. 'Se você ficar de costas, não vou te entender'. São coisas muito simples que inclusive pessoas próximas nunca tinham prestado atenção, porque eu não falava.
É cansativo, claro, não é legal ficar o tempo todo falando que sou surda, mas é dessa forma que a gente consegue avançar.
As pessoas têm dificuldade de entender que existe diversidade dentro da surdez. Quando falo que sou surda, é comum a pessoa começar a gritar comigo ou fazer mímica. Perguntam: 'Nossa, mas você é surda, como consegue falar?'. Mas existem surdos que se comunicam com língua de sinais, outros não, alguns falam, outros não.
Tive muitos medos, claro, e meus pais também. Eles contam que, no momento que você recebe o diagnóstico, é como se ganhasse um carimbo: PCD. Os médicos chegaram a dizer que eu não poderia estudar numa escola regular, muito menos me formar na faculdade. Não tem como não ter medo. Mas olha quanta coisa consegui realizar — e hoje trabalho com pesquisa musical. É importante falar tudo isso para que outras pessoas acreditem e não sintam os mesmos medos que eu senti."
Benedita Casé Zerbini tem 32 anos, é produtora, audiovisual e mora no Rio de Janeiro.
"Ficha foi caindo aos poucos, junto com a audição"
"Eu tinha 17 anos quando comecei a perder a audição, mas foi aos 20 que o otorrino disse: 'Acredito que, aos 40 anos, você não ouça mais nada'. Estranhamente, não senti o baque. Voltei pra casa e continuei minha vida. Acho que minha ficha foi caindo aos poucos, junto com a minha audição, que foi sumindo a cada audiometria [exame que identifica tipo, grau e configuração da perda auditiva].
O momento mais difícil foi quando eu comecei a não entender mais as músicas, não identificar quem estava cantando e ser proibida de usar fones de ouvidos. A gente vai perdendo a audição aos poucos e tendo que lidar com esses pequenos lutos diários.
No começo, os zumbidos me enlouqueceram. Procurei terapia, yoga, meditação, e hoje consigo hoje com eles numa boa. Tenho 43 anos e ainda vivo bem com os aparelhos. Mais tarde, posso fazer implantes cocleares.
Quando li o livro da Paula Pfeifer, o 'Crônicas da Surdez', senti uma euforia, senti que tinha encontrado alguém da minha tribo. Foi muito emocionante, me senti acolhida. A minha peça [o monólogo 'Surda', que será dirigido por Andréa Beltrão] é sobre isso: levar para quem está nesse universo da surdez o mesmo sentimento de pertencimento que eu sinto diante de obras que tratam do assunto.
Eu sempre quis escrever sobre a surdez, mas a pandemia apressou esse processo porque, com o uso das máscaras, é quase impossível a comunicação fora de casa, já que a leitura labial é parte muito importante da minha escuta. Me senti de volta ao passado, quando não usava aparelhos e acabava me isolando para estar somente entre as pessoas que já sabiam da minha condição e tinham paciência comigo.
Eu sabia que, para escrever a peça, teria que voltar a mergulhar nos primeiros e dolorosos anos dessa jornada. Acho que me faltava coragem. Não posso negar que foi e continua sendo difícil, mas, apesar disso, a mãe e escritora que sou hoje são também reflexos dessa deficiência. Todas as perdas decorrentes da surdez me trouxeram até a mulher que eu sou." Julia Spadaccini é roteirista, tem 43 anos e mora no Rio de Janeiro.
"Aceitação foi difícil, ficava procurando culpados"
"Eu tinha 12 anos quando perdi a audição e foi um processo angustiante, desde a percepção de que não estava ouvindo bem até o diagnóstico de que se tratava de uma lesão permanente.
Na época eu estava muito gripada e imaginei que o desconforto que sentia no ouvido, parecido com quando você espirra muito forte ou está dentro de um avião, passaria, mas isso não aconteceu.
Simultaneamente à perda auditiva, comecei a ouvir um zumbido constante. O que aconteceu comigo é raro: foi uma perda súbita da audição por conta de uma lesão no nervo auditivo do ouvido esquerdo.
Passei a ter dificuldades de identificar a direção do som, quando alguém me chamava de longe eu não sabia de que lado vinha a voz. E quando alguém cochichava no ouvido esquerdo, eu tinha vergonha de dizer que não escutava. Quando dizia, quase sempre a reação das pessoas era de dar risada, achar engraçado e perguntar se eu estava falando sério. Eu tinha vontade de chorar, queria que isso fosse tratado com naturalidade e respeito.
Até os 19 anos, quando comecei a fazer terapia, eu tinha momentos de pânico toda vez que ficava gripada, com medo de perder a audição do ouvido direito também.
O processo de aceitação foi difícil, eu ficava procurando culpados. Me perguntava se meus pais tinham sido negligentes com minha saúde e se isso poderia ter sido prevenido ou revertido, mas não dá para voltar no tempo e esses pensamentos só me causaram sofrimento.
Tenho consciência que preciso me esforçar muito mais para ser bem sucedida no trabalho, pois vivemos em uma sociedade capacitista e não são oferecidas oportunidades às pessoas com deficiência em igualdade de condições, com equidade.
O capacitismo se coloca nas nossas vidas de forma velada, para que a gente tente superar a deficiência e finja que ela não existe, mas isso causa sofrimento.
Acho importante que nós, surdas que ouvem, possamos de alguma forma "sair do armário" e falar abertamente sobre a surdez, buscando que a sociedade seja mais inclusiva e não tente nos encaixar numa normalidade que não existe." Aline Juliete de Abreu é advogada e assessora governamental, tem 32 anos e vive em Natal.
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