Prática criminosa, tirar camisinha sem permissão gera trauma em mulheres
"Uma vez, ele tinha forçado a barra para transar sem camisinha. Cedi. Da última vez que transamos, começamos com o preservativo. Foi só mudar a posição, ele tirou. Parei na hora, falei para ele sair de cima de mim e disse: 'Você não tem o direito de escolher por mim'. Ele disse que se estivesse preocupada com doenças, faria os exames para me mostrar que não tinha. Me senti desrespeitada, foi um abuso sexual o que sofri".
O relato da empreendedora Fernanda*, de Belo Horizonte, descreve a prática de stealthing. É um nome em inglês que define a violência sexual de o homem tirar o preservativo durante a relação sexual sem que o parceiro ou a parceira perceba, alegando que a camisinha atrapalha, que é apertada demais ou que a sensação sem o preservativo é melhor para a transa.
Há pelo menos três desdobramentos quando isso acontece sem a permissão do outro: a preocupação com a transmissão de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs), o surgimento de traumas emocionais e psicológicos, que podem complicar a vida afetiva e sexual, e a possibilidade de seguimento na esfera criminal, para que a pessoa pague na Justiça pelo que fez. Segundo a advogada Luciana Terra, diretora jurídica do Movimento Me Too Brasil e liderança do Justiceiras, a prática pode ser considerada como violação sexual mediante fraude e, dependendo do contexto, estupro.
"Se fosse o contrário, eu, uma mulher, tirando a camisinha, iriam dizer que estava querendo engravidar para ficar com o dinheiro dele. Mas, algumas pessoas que contei isso tentaram minimizar a questão. Um amigo chegou a pergunta: 'E você gostou?'. Como vou ter gostado de ter sido abusada?", disse Fernanda, em entrevista para Universa.
Tirar a camisinha sem consentimento é crime
Seja entre ficantes, namorados, casados, a prática de stealthing ("dissimulação", em inglês) é considerada violência sexual por ferir a integridade e os direitos sexuais e reprodutivos do outro. Remover o preservativo na hora do sexo ou furá-lo antes de transar são, essencialmente, formas de expor alguém a riscos e violações sem consentimento.
Para além da questão de saúde física, isso pode gerar problemas emocionais, como aconteceu com a pedagoga Fabiana Moreira ao se relacionar com um homem que conheceu em uma balada.
"Estávamos no carro para transar, perguntei se ele tinha camisinha e ele confirmou. 'Então, coloca', disse. Em certo momento, ele tirou. Falei que não era para continuar, mas ele seguiu até ejacular. Fiquei com nojo dele, e também senti como se fosse minha culpa".
Depois disso, fiquei alguns meses sem me relacionar, porque achei que qualquer outro homem iria fazer daquele jeito.
Para Fabiana, o episódio também gerou mais baques. Ela precisou tomar pílula do dia seguinte, paga por ele, e lidar com a perda de confiança em novas relações. "Foi como quando fui assediada na academia, e nunca mais consegui voltar lá. E essa vez da camisinha, foi algo muito íntimo e constrangedor. Por isso que, enquanto mulheres, precisamos nos unir e nos informar sobre como o machismo impacta nas nossas vidas".
O psiquiatra e especialista em Sexualidade Humana pela USP Thiago Dornela Apolinario considera que, por ser uma situação de violência sexual vivenciada no próprio corpo, é possível que se altere a capacidade de a vítima se entregar e confiar novamente em outros parceiros. "Além de ansiedade e depressão em alguns casos. Até porque deve ter um período em que ela fará exames médicos para ISTs, e ainda precisará saber se teve consequências na saúde ou não".
Foi o que fez Fernanda que, na mesma semana do acontecimento, foi ao posto de saúde e também pediu para que o homem enviasse os resultados que comprovaram que ele não tinha ISTs. Ela afirmou que não procurou registrar o caso na Polícia por medo de ser descreditada sobre a denúncia. Autoridades, no entanto, reforçam a importância de levar os casos ao âmbito criminal.
'Pode não parecer grave, mas é uma ferida emocional'
A estagiária de Psicologia Dominique Carvalho fala de "ferida emocional" ao lembrar da vez em que, depois de transar, encontrou o preservativo masculino dentro de sua vagina — o parceiro usou a camisinha, mas não se importou em avisá-la que, após a penetração, ela tinha sumido.
"Ele colocou a camisinha sem eu ter que pedir. Ok. Um mês depois, tive outra relação e o meu parceiro me mostrou a camisinha. Foi uma situação constrangedora e um choque. Possivelmente, quando estávamos transando, ele deve ter visto que o preservativo não estava mais ali. Pode não parecer muito grave, mas isso abriu uma ferida emocional muito grande, já pensei que estaria grávida, que não poderia fazer um aborto legal... Isso nunca tinha acontecido comigo", explica.
E como pessoas que são abusadas sexualmente de outras formas, a gente perde a confiança nas pessoas. E até a libido fica afetada, porque você fica preocupada em saber se o cara está com a camisinha mesmo.
Se é crime, por que, afinal, eles fazem isso?
"Acredito que, na cultura do machismo, o homem toma o corpo da mulher como propriedade para servir ao seu prazer, sem considerar a vontade desse sujeito feminino", pondera o psiquiatra. A mesma lógica silencia e oprime mulheres que são vítimas da prática, mas não se sentem seguras para reagir, denunciar ou procurar ajuda jurídica.
"Trabalho no Me Too e no Justiceiras e não tenho nenhum caso sobre a violência de se tirar a camisinha sem consentimento. Por vezes, as mulheres sequer reivindicam a prática como crime. Mas isso está sendo construído", analisa Luciana Terra.
Para a advogada, a situação poderia ser enquadrada tanto no artigo 215 do Código Penal, de violação sexual mediante fraude, quanto como estupro. "Vejo resistência dos operadores de Direito em aplicar como estupro, que tem uma pena muito alta.
Mas sempre vou defender essa tese: a mulher continuaria na relação se ela soubesse que a camisinha foi tirada?
O entendimento se deu, aliás, numa decisão de dezembro do ano passado da 7ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios que garantiu que uma mulher pudesse fazer aborto legal e seguro depois de ter engravidado em uma relação sexual iniciada com uso de preservativo, em que o parceiro retirou o preservativo sem consentimento.
Para o colegiado, o ato foi considerado crime de estupro. "No particular, o ato sexual, embora inicialmente consentido mediante o uso de método contraceptivo, deixou de sê-lo no momento em que o agressor retirou o preservativo, ao que a vítima gritou para que este cessasse o ato sexual e teve seu rosto forçado contra a parede, com a ordem de que ficasse quieta", destacou o texto, reproduzido no site do TJ.
O que fazer quando for vítima
É recomendado que a vítima procure uma unidade de saúde para profilaxia ligada ao risco de exposição a ISTs. Que, aliás, se forem existentes, podem gerar um indiciamento criminal por lesão corporal gravíssima ou pelo crime previsto no artigo 130 do Código Penal: "Expor alguém, por meio de relações sexuais ou qualquer ato libidinoso, a contágio de moléstia venérea, de que sabe ou deve saber que está contaminado", destaca a advogada.
Em casos que o preservativo saiu involuntariamente e o homem seguiu no ato sexual, assumindo o risco de expor o parceiro ou parceira, Luciana Terra afirma que pode se discutir "dolo eventual".
A Lei Maria da Penha também garante a proteção a essa vítima. Por isso, é recomendado fazer um boletim de ocorrência sobre o episódio.
*O nome foi trocado a pedido da entrevistada por questão de privacidade
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