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Cultura do makeover: 'Tirar o aparelho e os óculos não me fez mais feliz'

Cena de "O Diário da Princesa", de Garry Marshall - Reprodução
Cena de "O Diário da Princesa", de Garry Marshall Imagem: Reprodução

Júlia Flores

De Universa

04/10/2021 04h00Atualizada em 05/10/2021 09h18

Um filme dos anos 2000, "O Diário da Princesa", apresentou um conceito que até hoje se vê em postagens nas redes sociais. Na trama, Mia Thermopolis — personagem estrelada por Anne Hathaway — passa por uma transformação estética ao descobrir que é membro da família real de um país fictício chamado Genovia. A grande mudança? Ela tira os aparelhos, alisa o cabelo e passa a usar lentes de contato.

Dali em diante, a vida da personagem deslancha. Até então considerada uma jovem feia e triste, depois que passa pela mudança de visual Mia ganha amigos, arranja um namorado e "conhece a felicidade", como se o seu sucesso estivesse diretamente relacionado à estética. O filme é um dos principais exemplos da cultura do makeover.

"A cultura do makeover faz a gente acreditar que uma mudança na aparência vai solucionar a vida da mulher, como se uma transformação externa fosse a única responsável por fazer ela arranjar um namorado novo, um trabalho mais legal, amigos mais interessantes, etc", explica a comunicadora Clara Fagundes.

Mesmo 20 anos após o lançamento de "O Diário da Princesa", a dinâmica da "mudança completa" continua fazendo parte da realidade feminina. "A gente foi doutrinada com essa ideia de que a felicidade só existiria quando atingíssemos um padrão de beleza", opina Claro. A diferença é que agora, em 2021, a cultura do makeover não está restrita apenas a filmes de romance e novelas adolescentes, mas também encontrou espaço nas redes sociais, em que hashtags e influencers continuam compartilhando a ideia de que a felicidade feminina está atrelada a uma mudança superficial no visual.

Antes x depois

No aplicativo de vídeos TikTok, a hashtag #glowup agrega vídeos em que jovens comemoram a sua mudança de visual. A maioria das mudanças está relacionada ao peso do usuário. Nas gravações, um "antes e depois" é revelado; normalmente a pessoa do "antes" é deprimida e gorda, e a do "depois", feliz e magra.

A #glowup possui mais de 30 bilhões de visualizações, e a maioria dos vídeos é protagonizado por mulheres. Para a ativista antigordofóbica Juliana Santanna, "tem gente que ainda pensa que emagrecer é uma forma de vencer na vida. Problema é que emagrecer nem sempre depende só da própria vontade; além do mais, a gente pode estar satisfeita com o corpo, ser gorda e ter sucesso."

O condicionamento da felicidade feminina à aparência é perigoso, como alerta Clara Fagundes: "Pintam a ideia de que existe uma 'linha de chegada' para a mulher alcançar e, para isso, ela precisa se encaixar nos padrões de beleza. Isso tem relação com dietas cíclicas e malucas, que vendem um emagrecimento rápido. Na cabeça de muitas, depois de passar um mês tomando suco de limão e comendo 500 calorias por dias, ela vai ser magra e feliz. Mas e depois? Tem uma névoa depois da linha de chegada."

A mulher que tenta se encaixar em todos os padrões nunca vai estar satisfeita, porque o mercado é de desejos não atendidos, porque isso é dinheiro. Mesmo que você seja magra, vão dizer que você precisa de criolipólise para arrumar sua 'barriga', ou um preenchimento nos glúteos, etc. Para a indústria da beleza, é necessário que as mulheres não consigam se sentir suficientes. A insegurança feminina é um produto - Clara Fagundes

Na opinião de Juliana, uma mulher pode sim passar por mudanças de visuais, desde que elas não sejam motivadas por padrões ou por pressão estética. "Eu mesma amo me maquiar, fazer 'transformações' com make, mas tento fazer isso seguindo padrões 'saudáveis', encaro como uma forma de expressão."

A gente tem a ideia de que as pessoas precisam estar no padrão para serem aceitas pelos outros, enquanto o lado interno continua o mesmo. Se você está se sentindo mal, é importante buscar terapia, mudar do lado de dentro. O que faz sua vida mudar é ficar bem consigo mesma - Juliana 'Baddie' Santana

Eu mudei minha aparência. Depois descobri que isso não era necessário

Por causa da pressão estética, Ana Carolina teve transtorno alimentar aos 13 anos - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Por causa da pressão estética, Ana Carolina teve transtorno alimentar aos 13 anos
Imagem: Arquivo pessoal

Quando a paulistana Ana Carolina tinha 13 anos, ela enfrentou um período turbulento de sua vida. Na época, ela sofria bullying por causa de sua aparência, o que desencadeou um transtorno alimentar. Na adolescência, teve que usar óculos e aparelho. Hoje, aos 23, a estudante de medicina afirma que foi o "complexo da cultura do makeover" que a levou à anorexia.

"Sempre fui aquela criança padrão, loira, magra e olho claro. Um dia tive que colocar aparelho e usar óculos. Comecei a me achar feia e isso causou uma série de gatilhos emocionais. Sofria bullying e tinha uma ânsia de mudança; via filmes, séries e revistas que traziam mulheres padrões e queria ser igual. Achava que elas eram completamente felizes porque não usavam óculos, nem aparelho, e eram magras. Achava que se eu fosse igual, seria feliz também", comenta Ana.

Na opinião de Dora Góes, psicóloga do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas (HCFMUSP), o ideal de beleza do corpo é antigo, mas "nunca esteve tão presente na população. "Nas redes sociais vemos uma série de vídeos e imagens que relacionam a aparência física com a felicidade. Com um longo tempo de exposição a este tipo de conteúdo, passamos a acreditar que esse é o caminho para ter uma vida bem vivida."

Ana, pela própria experiência, disse que não foi a transformação física que a ajudou a se recuperar da anorexia; pelo contrário: "foi um processo de terapia. Tive que me entender e reconhecer que minhas características iam além do físico."

90% dos problemas teriam sido resolvidos se eu tivesse consciência de que eu sou mais do que a minha aparência - Ana Carolina

Para Dora, a maturidade e o tratamento com acompanhamento profissional podem ajudar as pessoas a vencerem casos de transtornos alimentares e a dismorfia corporal. Ela recomenda que os jovens consumam menos conteúdos que promovam "makeovers" e glamorizem padrões, fora ou dentro das redes sociais.

Barriga de chopp? Ok! Felicidade? Ok também

Atualmente Ana voltou a usar óculos e aparelho. Para ela, os acessórios já não são problema. "Sempre que começo a ficar infeliz por causa da minha aparência, lembro da mulher 'fo*a' que me tornei. Sou formada em biomedicina, estou cursando minha segunda faculdade (medicina)... Tenho barriga de cerveja, e daí? Vou continuar bebendo porque gosto, e é isso que me faz feliz."

Clara concorda com Ana. "Autoconhecimento leva tempo, quanto mais velha a gente fica, mais experiência a gente possui. Antes eu mesma tinha na minha cabeça que ter o corpo ideal era requisito para o sucesso, hoje eu vejo que tenho muito mais a oferecer do que isso. Às vezes quando você é novo, você não tem outras características para se 'bancar'', 'bancar' a própria personalidade", opina.