Dia da Menina: ECA deve ser revisto para protegê-las, dizem especialistas
No ano passado, a história da menina de 10 anos que ficou grávida após ser estuprada pelo tio, em São Mateus (ES), ganhou o noticiário nacional depois que ativistas antiaborto se envolveram, entre eles a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves. Embora o caso tenha se tornado emblemático, ele não é isolado no Brasil: segundo o último Anuário do Fórum Nacional de Segurança Pública, uma menina de menos de 13 anos é estuprada a cada 15 minutos no Brasil.
Justamente para proteger esse contingente de meninas que especialistas ouvidas por Universa defendem que o ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), vigente há mais de 30 anos, seja revisto com recorte de gênero e artigos específicos para a proteção das meninas.
A advogada Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, que atua contra a exploração sexual infantil, explica que o estatuto foi escrito para proteger meninos e meninas da mesma forma, mas acredita que meninas precisam de um olhar mais atento ao resguardo de seus direitos:
"A opressão contra as crianças existe independentemente do gênero. A sociedade, de forma geral, acha que é dona de crianças de até 7 ou 8 anos. Mas, quando os meninos vão crescendo, deixam de ser vistos como propriedade, enquanto as meninas continuam neste lugar passível de violência na vida adulta".
Isabela Del Monde, cofundadora do #MeToo Brasil e colunista de Universa, concorda: "É necessária uma revisão do ECA a partir de uma perspectiva de gênero. É interessante ter leis com uma percepção interseccional dos marcadores de violência que compõem a nossa sociedade para que exista uma proteção mais efetiva, mais direcionada."
Violência sexual prejudica meninas até a vida adulta
Tanto Luciana Temer quanto Isabela Del Monde enxergam a violência sexual como a mais grave, a que mais atinge as meninas brasileiras e que merece mais atenção.
"Não dá para não fazer um recorte de gênero ao pensar nas crianças, porque as meninas estão mais sujeitas à violência sexual e ainda têm, como agravante, a possibilidade de uma gravidez na infância ou adolescência", vê Temer.
Dados do Ministério da Saúde mostram que, em 2019, mais de 19 mil meninas deram à luz antes dos 14 anos no Brasil. E, em média, 6 crianças da mesma idade realizaram abortos por dia. Somados, os números mostram que mais de 21 mil meninas brasileiras engravidaram naquele ano.
Vale destacar que, por lei, cometer qualquer ato sexual com menores de 14 anos configura estupro de vulnerável, porque, nestes casos, a lei entende que a pessoa não tem discernimento para consentir.
O estupro de vulnerável seguido de gravidez, explica Luciana Temer, impõe às meninas um ciclo de violência que pode durar a vida toda e do qual é muito difícil sair.
Estudos da ONU mostram que meninas que engravidam tendem a sair da escola — dado que é confirmado no Brasil pelo IBGE: por aqui, apenas uma em cada dez adolescentes de 15 a 19 com pelo menos um filho continua estudando.
Outra violência contra crianças que atinge especialmente as meninas é o trabalho doméstico forçado — que também as tira da escola. Segundo a pesquisa "Por Ser Menina", realizada em 2020 no Brasil pela Plan International, 13,7% das meninas de 6 a 14 anos trabalham ou já tiveram experiência de trabalho; entre elas, 37,4% atuam como domésticas.
"Essas meninas deixam a escola, não se capacitam e não entram no mercado formal de trabalho. Como consequência, ficam sujeitas a um eterno ciclo de violência, dependentes da figura de um companheiro", percebe. E questiona: "Qual é a política específica para essa questão no Brasil? Como o país protege essas meninas?".
Lei Maria da Penha pode ser usada a favor de crianças
Isabela Del Monde diz que, na falta de uma legislação específica para proteger meninas, é possível recorrer à Lei Maria da Penha.
Ela explica que essa lei protege meninas e adolescentes, da mesma forma que protege mulheres adultas, contra violência doméstica e familiar. Segundo Del Monde, há casos em que a Justiça aplicou a Lei Maria da Penha na proteção de meninas — em 2020, por exemplo, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) condenou um homem pelo estupro de vulnerável da filha de 4 anos.
Por esta lógica, as menores de 14 anos vítimas de violência psicológica, moral, física ou sexual dentro de casa cometidas por familiares podem usar recursos da Lei Maria Penha como a medida protetiva de urgência, que garante afastamento do agressor do lar, por exemplo.
Educação sexual é solução para proteger meninas
"Existe uma legislação que protege mulheres vítimas de violência, a Lei Maria da Penha, porque a sociedade enxergou o problema e entendeu que era importante enfrentá-lo. Por que ainda não temos esse mesmo entendimento especificamente em relação às meninas?", questiona Temer.
Na falta de uma legislação específica, ela vê três medidas que podem ajudar — e muito — a mudar a realidade que ameaça meninas brasileiras:
"Falar sobre sexualidade nas escolas é urgente e estamos atrasados neste sentido. As escolas precisam discutir sexualidade saudável de forma igual com meninos e meninas para, consequentemente, prevenir gravidez precoce e ISTs", explica. "Por fim, é preciso proteger a menina que engravida e chega a um hospital para denunciar seu agressor. Ela precisa ter seus direitos resguardados e seu futuro garantido".
"À medida que a sociedade, de fato, enxergar a importância de proteção das meninas, entendendo que existem diferenças entre as violências que atingem meninos e meninas, pode haver uma legislação mais específica", aponta Luciana Temer. "É um processo lento, mas é preciso enxergar e enfrentar esta situação. Caso contrário, a situação das meninas não terá solução no Brasil."
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