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'Após estupro marital e violência psicológica, saí de uma relação abusiva'

Juliana Assunção saiu de dois relacionamentos abusivos e hoje estuda enfermagem - Arquivo pessoal
Juliana Assunção saiu de dois relacionamentos abusivos e hoje estuda enfermagem Imagem: Arquivo pessoal

Juliana Assunção, em depoimento a Luiza Souto

De Universa

14/10/2021 04h01

"Fui mãe na adolescência, meu terceiro filho foi fruto de um estupro marital mas hoje, aos 28 anos, vejo que dei a volta por cima e tenho uma perspectiva de vida.

Minha primeira filha nasceu quando eu tinha 14 anos, quando tive meu primeiro relacionamento. O pai dela já era maior de idade e ficamos juntos por 4 anos, mas sempre fui traída e humilhada por ele. Após o término, saí da Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, e fui morar em Resende, no interior fluminense, perto da minha mãe e da minha avó.

Foi lá onde conheci o meu segundo companheiro. Decidimos morar juntos após 5 meses de relacionamento, quando engravidei pela segunda vez, aos 18. Quando minha filha nasceu, meu ex me convenceu a mudar de bairro, longe da minha família. Nessa mesma época, perdi o emprego e já estava totalmente dependente dele.

As humilhações começaram logo depois. Ele falava que eu não prestava para nada e mal colocava comida dentro de casa. Ele trabalhava em um açougue e, às vezes, levava a pele do frango que ia para o lixo para as crianças comerem.

Também passava a noite fora de casa e não comprava fralda. Então, quando minha bebê completou nove meses, decidi me separar. Expliquei minha situação para meu pai e pedi a ajuda dele com uma pensão.

"Depois de um vinho, acordei nua sem lembrar o que aconteceu"

Ao contar para meu ex da decisão de me separar, ele pediu um mês para resolver sua vida e se mudar para Minas Gerais, onde sua família morava. Nesse período, ele passou a levar comida para as crianças, voltou a ficar uma pessoa exemplar, digamos assim. Mas aconteceu de eu ter sido abusada.

Uma noite ele chegou em casa com vinho e pizza. Lembro que tomei um copo e apaguei. No dia seguinte, acordei nua na cama.

Perguntei o que tinha acontecido e ele falou que bebi demais e que transamos, mas eu não lembro de nada. Pedi para comprar a pílula do dia seguinte, mas ele insistiu que usou camisinha. Ele não comprou e fiquei com vergonha de pedir para minha mãe, pela situação de decidir me separar e ter transado com ele depois.

O tempo foi passando até começar a sentir sintomas como enjoo e tontura. Sabia que tinha ficado grávida e não fui nem fazer exame. Ao comentar com ele da minha certeza, ouvi que eu não ia conseguir ficar sozinha, que ia precisar dele e que seria melhor para todo mundo se ficássemos juntos.

Entrei em depressão e pedi para minha mãe ficar com a minha mais velha. Eu já não tomava mais banho nem escovava o dente. Chorava o dia inteiro. Não fiz o pré-natal, mas com 30 semanas eu passei mal e precisei fazer uma ultrassonografia. Foi quando descobri que era um menino. Ele nasceu prematuro, duas semanas depois.

"Não comprava nem absorvente para poder sair"

Somente após o nascimento, a família soube da criança. Eu não aceitava aquela situação e, ao contar sobre meu filho e como tudo aconteceu, ouvi da família e dos amigos que, por ele ser meu marido, podia ter feito o que fez. Que abuso seria se ele me pegasse à força e que eu tinha que relevar. Com medo de a depressão piorar, procurei ajuda psicológica.

Meu ex me convenceu a ir ainda mais longe da família, para Minas Gerais, morar numa fazenda onde a família dele trabalha. Não queria partir, mas não tinha o apoio de ninguém. Fomos morar no meio do mato, onde não pegava telefone nem passava ônibus. Dependia dele para tudo, inclusive para comprar produtos de higiene.

Se a gente brigasse por qualquer motivo, ele não me dava nada e ainda jogava absorvente fora caso eu estivesse menstruada, como uma forma de me prender em casa.

Ele sabia que usar um paninho não iria segurar. Até remédio para dor ele escondia. Era a mesma coisa com comida. E assim ele me fazia acreditar que eu não conseguiria ficar sozinha, que ninguém iria apoiar uma mãe de três filhos. Até a minha mãe me convenceu de que, se estava ruim com ele, pior seria sem ele. Minha irmã já passou por agressão física e ela teve o mesmo discurso.

Cheguei a ir na delegacia uma vez, porque às vezes ele botava a gente dentro do carro com a desculpa de que iríamos fazer um lanche na cidade, a cinco quilômetros da fazenda, mas simplesmente nos abandonava na rua e saía. Outras vezes ele me deixava na casa da irmã dele, em outro bairro, e ia embora. Numa dessas consegui carona até uma delegacia e lá pedi carona para a minha casa. O policial chegou a conversar com o meu sogro, falando que meu ex não podia fazer aquilo conosco.

No dia seguinte consegui carona para voltar à delegacia e fazer um boletim de ocorrência, mas os policiais se recusaram. Falaram que não ia adiantar nada e que o melhor a fazer era ir embora, senão viraria estatística.

'Ele gritava para os vizinhos escutarem que eu não queria transar'

Fui ficando nesse relacionamento. Coloquei na cabeça que aquilo ali era meu fim. Engordei muito, não cuidava de mim, queria ficar de um jeito que ele não quisesse nada comigo, mas às vezes ele gritava para os vizinhos escutarem que eu não queria transar. Eu ficava com vergonha e cedia.

Até descobrir uma traição dele, com uma mulher de 16 anos. Foi quando ele me deixou em paz e concordou em separar, em setembro de 2016.

Voltei para Resende e, com ajuda da minha mãe e da minha avó, aluguei um quarto com banheiro. Também refiz meus documentos porque ficaram na casa dele. Vim só com a roupa do corpo.

Comecei a fazer faxina numa lanchonete, depois em motel, tomei conta de criança e minha vida foi se estabilizando. Percebi o quanto de tempo perdi paralisada numa história por medo.

Hoje pago meu aluguel e, no final de 2017, conheci outra pessoa com quem estou até hoje. Também estou estudando Técnica em Enfermagem e trabalho à noite como cuidadora de idosos.

Quando olho para trás, percebo que fui reflexo do que vivi com meus pais. Escutei muito eles brigando, meu pai falando que minha mãe não queria transar com ele e coisas do tipo.

Hoje trato meus filhos — de 14, 9 e 7 anos — de forma igual, sem essa de "isso é de menina ou aquilo é de menino". Dia desses, meu filho estava dançando e as meninas falaram que não podia, que era coisa de menina. Eu as repreendi.

Estou sempre trazendo para dentro de casa muitos debates. Converso com meus filhos sobre tudo, respeitando seus limites, claro."

Juliana Assunção, 28 anos, é cuidadora de idosos, estudante de Técnica em Enfermagem e mora em Resende (RJ)