Topo

'Professora, tô usando papelão': como pobreza afeta quem menstrua no Brasil

Com veto presidencial a texto que previa a distribuição de absorventes na rede de ensino pública, Brasil passou a discutir mais "pobreza menstrual" e impacto na vida de quem menstrua - ISvyatkovsky/Getty Images/iStockphoto
Com veto presidencial a texto que previa a distribuição de absorventes na rede de ensino pública, Brasil passou a discutir mais "pobreza menstrual" e impacto na vida de quem menstrua Imagem: ISvyatkovsky/Getty Images/iStockphoto

Nathália Geraldo

De Universa

14/10/2021 04h00

Imagine que, uma vez por mês, por alguns dias, você se sinta impedido de sair de casa por uma situação fisiológica. Para conseguir realizar atividades importantes, como frequentar aulas, precisa improvisar para que aquilo não seja um empecilho na sua existência. Se o impedimento estivesse ligado à menstruação, essa seria uma realidade de "pobreza menstrual", termo que se popularizou nos últimos dias a partir do veto de Jair Bolsonaro (sem partido) à distribuição de absorventes íntimos de forma ampla na rede de ensino e a grupos de pessoas que menstruam no Brasil.

Após críticas negativas ao veto, o Governo anunciou que "trabalhará para viabilizar a aplicação da medida", que pretende contemplar adolescentes que estão cursando o ensino médio e os anos finais do ensino fundamental, mulheres em situação de rua, presidiárias ou em situação de vulnerabilidade social. No Rio de Janeiro, a Prefeitura lançou um programa de distribuição dos itens de saúde menstrual para combater a evasão escolar.

Apesar de as políticas públicas para o assunto estarem agora sob os holofotes, diariamente pessoas sofrem com a falta de dinheiro para comprar absorvente, o tabu sobre sangue menstrual e as dificuldades de acesso a recursos como água, sabão e banheiros. Um relatório elaborado em maio pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) mostra que mais de 4 milhões de meninas (38,1% do total das estudantes) frequentam escolas com a privação de pelo menos um desses itens.

Sem conseguir comprar opções higiênicas, meninas e mulheres usam papel higiênico, papelão, sacolas plásticas e jornal sobre a calcinha.

De acordo com um levantamento encomendado por uma marca de absorventes, 28% das alunas brasileiras já perderam aula por não terem o produto para usar. Foi diante das dificuldades vivenciadas pelas estudantes na prática que a então diretora da escola municipal Cosme de Farias, em Camaçari, na Bahia, Edicleia Pereira Dias, criou um banco de absorventes para a unidade de ensino.

professora - Divulgação - Divulgação
Edicleia é criadora do Banco de Absorventes da escola em Camaçari; ela pede para que iniciativas como essa sejam parte das políticas públicas brasileiras
Imagem: Divulgação

"Fizemos planilhas no Excel, em 2010, para entender o alto índice de evasão escolar que tínhamos de estudantes de 10 a 17 anos. A secretaria da escola percebeu, então, que as meninas faltavam mês a mês, o que poderia coincidir com o período menstrual delas. Cheguei à conclusão de que se não estavam indo para a aula, era por causa do absorvente", disse a docente a Universa.

Passamos então a recolher doações e entregar para elas, mas com sabonete, creme de cabelo, maquiagem, como se fosse um presente. É um tabu falar disso, que poderia expor ainda mais quem vive na vulnerabilidade.

Edicleia Pereira Dias, criadora do banco de absorventes da escola municipal Cosme de Farias (BA)

A distribuição dos absorventes descartáveis acontece desde então na escola, diz Edicleia. "Já perguntaram sobre entregarmos o absorvente de pano, para ser ecologicamente correto. Mas estamos falando de um contexto de alunos que às vezes não têm nem água para tomar banho. Que dirá para lavar o de pano."

Mensalmente, 270 estudantes de Camaçari recebem um kit com alguns absorventes para o uso durante o período menstrual.

Já ouvi de uma aluna de 10 anos que não faria a aula de atividade física porque não queria se sujar... Ela estava usando um papelão na calcinha.

Edicleia Pereira Dias

Para a docente, a distribuição do insumo deveria ser política pública no país. "Essa menina se submeteu a algo muito degradante, e todas deveriam receber o absorvente para não ter de fazer mais isso. Não só alunos em situação de vulnerabilidade. Deveria ser política pública mesmo, porque nossos braços são curtos para atender todo mundo."

Quem sofre mais com pobreza menstrual?

A oficial de Programa para Saúde Sexual, Reprodutiva e Direitos no UNFPA Brasil Anna Cunha destaca que a pobreza menstrual faz parte de um contexto social amplo. Não é só não ter dinheiro para o absorvente; a pessoa pode estar em um quadro de insegurança alimentar, não ter acesso a saneamento e a água tratada, entre outros direitos.

"Quando parte dos lares brasileiros tem algum grau de insegurança alimentar, a questão da higiene pessoal pode ficar em segundo plano. Na pandemia, se tiverem chegado à miséria, certamente as meninas e mulheres também foram atingidas por dificuldades de condições básicas ligadas à dignidade menstrual", pontua a porta-voz, que participou do levantamento.

O relatório também reforça o fato de que a experiência de menstruar de meninas e mulheres reflete em outro aspecto: a vida escolar. As mais afetadas são as estudantes negras, o que, para a oficial do Programa de Cidadania dos Adolescentes do UNICEF Gabriela Mora, tem a ver com a forma com que as disparidades sociais se estruturam na sociedade brasileira.

As meninas negras, que estão nas periferias dos grandes centros, as ribeirinhas, as quilombolas são as que são afetadas pela desigualdade, e com a pobreza menstrual não é diferente. Ela é, aliás, um reflexo da pobreza multidimensional.

Gabriela Mora, oficial do Programa de Cidadania dos Adolescentes do UNICEF

"Nossa missão é alertar os estados e as famílias para que essas pessoas tenham o direito a insumos para a saúde menstrual. Para que a menstruação não seja uma barreira para o desenvolvimento delas, que faltam à escola e perdem a capacidade de socializar por causa da pobreza menstrual", explica Gabriela.

Chance de menina negra não ter acesso a banheiro é 3 vezes maior

Tal desigualdade se exprime em números. Em casa, a chance de uma menina negra não ter acesso a banheiros é quase três vezes maior do que a de uma menina branca estar nas mesmas condições. Na escola, a diferença também se evidencia em um item simples: acesso a papel higiênico. O risco relativo de uma menina negra estudar em uma escola que não tenha acesso a ele nos banheiros é 51% maior do que para meninas brancas, aponta a pesquisa.

Em um recorte geográfico, as meninas e mulheres das regiões Norte e Nordeste estão mais descobertas em relação à dignidade menstrual. Do total de meninas que não têm banheiro em condições de uso na escola, 37,8% são do Nordeste. Ao usar a região Sudeste como referência, o estudo concluiu que o risco relativo de que uma menina da região Norte não tenha papel higiênico nos banheiros da escola é 271% maior.