Socióloga indígena combate violência de gênero na região do rio Negro
8 de março de 2020: mulheres indígenas pintadas e de mãos dadas ocuparam a orla de São Gabriel da Cachoeira, no noroeste do Amazonas, na fronteira com Colômbia e Venezuela. O objetivo do ato era divulgar os dados de violência contra mulheres na região.
Segundo um levantamento, até então, inédito, a cada dia, ao menos uma mulher é vítima de lesão corporal, ameaças de morte, estupro entre outros crimes na região. De 1º de janeiro de 2010 a 31 de dezembro de 2019, foram registrados na delegacia de São Gabriel da Cachoeira 4.681 casos de violência contra mulheres. Ou seja, uma média de 1,28 casos notificados por dia.
O levantamento e a mobilização para tornar públicos os números são resultado do trabalho de Elizângela da Silva Costa, finalista do Prêmio Inspiradoras na categoria Conscientização e Acolhimento.
Sempre tive a preocupação de como vou receber uma mulher que sofreu violência e como eu vou conscientizá-la sobre o que ela está passando. Essa violência não pode ser aceita como parte da cultura indígena porque não serve para o bem estar da mulher indígena.
Elizângela Baré
Aos 37 anos, ela é conhecida por seu sobrenome indígena, Elizângela Baré, em referência a sua etnia, os Baré, e por sua atuação pelo empoderamento das mulheres indígenas.
Entre 2017 e 2020, coordenou o Departamento de Mulheres Indígenas do Rio Negro (DMIRN), órgão da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn) que tem como objetivo articular ações em defesa dos direitos e do desenvolvimento sustentável das comunidades indígenas na região.
Depois que Elizângela assumiu a coordenação, o alcance do departamento saltou de 400 para 750 comunidades nas nove terras indígenas da região. Para isso, deixou a comunidade de São Gabriel Mirim, na Terra Indígena de Cué-Cué Marabitanas, e se mudou para São Gabriel da Cachoeira.
Na época, ela já tinha se formado em sociologia e feito uma pós-graduação em educação escolar indígena, mas conta que não sabia usar ferramentas de comunicação como o WhatsApp, nem tinha e-mail. "Eu achava que, nas comunidades, eu não precisava disso. Mas vi o quanto é importante para a mobilização", lembra.
Pediu ajuda e logo aprendeu, por exemplo, a colocar no papel ideias que foram aprovadas por instituições como o Fundo ELAS, uma iniciativa independente que investe em projetos encabeçados por mulheres. "Viabilizei projetos voltados para o direito da mulher indígena à cidadania, à educação e à saúde, e focados na geração de renda", diz.
Foi com os recursos arrecadados que o departamento pôde pagar a gasolina para os barcos chegarem a quase o dobro de comunidades que atingia antes. "A Foirn já ia a esses locais, mas o DMIRN, não. Esse contato é necessário porque precisamos mostrar a essas mulheres que há outras lutando por elas e que elas têm direito de ir à escola, de aprender, de ter autonomia", afirma.
Capacidade de articulação
Elizângela também buscou parcerias importantes. Em 2018, o DMIRN se uniu ao Observatório da Violência de Gênero no Amazonas (Ovgam) da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), ao Instituto Socioambiental (ISA) e à Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) no Projeto Mulheres Indígenas, Gênero e Violência do Rio Negro.
O levantamento sobre dados de violência divulgado no ano passado é resultado dessa parceria.
Elizângela tem uma capacidade enorme de chamar as pessoas para trabalharem juntas e de aceitar ajuda para implementar as ideias.
Dulce Morais, mestranda da Faculdade de Saúde Pública da USP
Dulce Morais ajudou na organização do ato na orla de São Gabriel. Trabalhou também com Elizângela na confecção da cartilha "Violência doméstica e violência sexual em tempos de pandemia".
"O material reuniu estratégias que as próprias mulheres do DMIRN já haviam elaborado e trouxe informações de contatos, como os da delegacia e do conselho tutelar. A Elizângela fez chegar a todas as comunidades", conta Dulce.
Para a distribuição da cartilha, Elizângela sempre enviava uma mulher que falava a língua de cada comunidade. "Havia uma tradução oral em baniwa, tukano, nheengatu ou yanomami, as línguas da região", explica.
Outra conquista de Elizângela à frente do DMIRN foi a vinda de um delegado próprio para a cidade. "Eles vinham apenas em alguns períodos. Nós conseguimos uma delegada e duas escrivãs, algo fundamental para o acolhimento das mulheres vítimas de violência", afirma. Por motivos pessoais, a delegada não está mais na cidade, mas o posto continua com um titular fixo e as duas escrivãs.
Em 2018, Elizângela deu início ainda a rodas de conversa. A ideia era estimular a troca de experiências e, dessa forma, fortalecer o autocuidado. Vanderleia de Jesus Cardoso, dona de casa de 38 anos, indígena da etnia Piratapuia, participou dos encontros.
Quando eu era criança, meu padrasto tentou abusar de mim. Eu não conseguia falar sobre isso com muitas pessoas. Ao ouvir outras mulheres dividindo suas histórias, eu pude falar e isso trouxe um alívio. As conversas também me ajudaram a entender que a violência é o espancamento, mas não só. Há a violência emocional e psicológica.
Vanderleia de Jesus Cardoso, indígena da etnia Piratapuia e uma das participantes dos encontros organizados por Elizângela
Durante a pandemia, Elizângela também atuou para conter a covid-19 nas comunidades. Ela lançou a campanha "Rio Negro, Nós Cuidamos", que distribuiu mais de 800 mil cestas básicas, máscaras e kits de higiente às comunidades. Conseguiu ainda a implantação de 15 pequenas Unidades de Atenção Primária Indígena (UAPIs) na região para atender pacientes de Covid-19.
Luta pelos direitos: herança de família
Elizângela lembra que a inspiração para lutar pelos direitos dos povos indígenas veio de dois tios paternos, que atuaram para diminuir o impacto da construção de uma estrada e do garimpo no território onde moravam.
"Nos anos 80, os peixes morreram, não podíamos consumir a água do rio. Meus tios viajavam, remavam longe para lutar contra isso. Eles me inspiraram a trabalhar pelo coletivo", afirma.
Logo no início, o olhar de Elizângela voltou-se para as mulheres indígenas. Em 2002, estava ao lado do grupo que criou o DMIRN. Como professora nas comunidades, mobilizava as mulheres e fazia reivindicações, como o pedido para que as parteiras acompanhassem os nascimentos junto com as enfermeiras.
Ela também estimulava as mães dos alunos a fazerem artesanato, mostrando que o trabalho lhes daria mais autonomia. O grupo, que começou com seis mulheres, hoje tem 50. Elas se constituíram formalmente na Associação das Mulheres Indígenas do Alto Rio Negro, presidida por Elizângela.
Elizângela conta que, ao assumir o cargo no DMIRN, precisou fortalecer a própria voz. Segundo ela, por mais que falasse com outras mulheres sobre seus direitos, tinha aprendido desde a infância a respeitar a palavra dos homens. "Eu tinha medo de discutir. Com os projetos que consegui aprovar, ganhei mais autonomia para o departamento. Passei a não precisar mais pedir autorização para tudo", diz.
Ao se mudar para a cidade para coordenar o DMIRN, enfrentou também desafios na vida pessoal. Um deles foi a adaptação dos três filhos na escola.
"A professora me chamou para dizer que eles não eram alfabetizados. Como mãe e professora, aquilo me doeu. Eles eram alfabetizados na nossa língua nheengatu, mas isso não tinha valor", diz.
Elizângela deixou a coordenação do DMIRN no final de 2020 e hoje atua como conselheira. Seu trabalho ainda rende frutos. Um dos projetos que deixou aprovado foi o de Promotoras Legais Indígenas. Trinta mulheres farão o curso este ano. Ela tomou conhecimento do Promotoras Legais Populares, que capacita mulheres sobre seus direitos e os caminhos de acesso à Justiça, e decidiu criar um curso específico para as indígenas. "Precisamos ter nas comunidades mulheres que conheçam as leis e que possam formar uma rede de apoio contra a violência", diz.
Entre os planos para o futuro, Elizângela quer fazer mestrado, mas sem deixar suas origens. "Quero continuar indo para a roça buscar açaí e buriti para o consumo da minha família e fazendo meus artesanatos. Não quero sair da minha terra", afirma.
Sobre o Prêmio Inspiradoras
O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e do Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. São 21 finalistas, divididas em sete categorias. Além de Conscientização e Acolhimento, tem também: Inovação em Câncer de Mama, Informação para vida, Acesso à Justiça, Equidade e Cidadania, Esporte e Cultura e Representantes Avon.
Para escolher suas favoritas, basta clicar na votação a seguir. Está difícil se decidir? Não tem problema: você pode votar quantas vezes quiser. Também vale fazer campanha, enviando este e os outros conteúdos da premiação para quem você quiser. Para saber mais detalhes sobre a votação, é só consultar o Regulamento.
No mês que vem, durante dos 21 dias de enfrentamento à violência, uma série de lives com as finalistas de todas as categorias vai debater este e outros temas relacionados ao universo feminino. Dá para acompanhar as novidades no portal Universa e em nossas redes sociais.
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