Militante protege mulheres com deficiência da violência doméstica
A gaúcha Carol Santos tem 40 anos e, há 21, é paraplégica. Perdeu os movimentos depois de levar um tiro desferido pelo ex-namorado. Ele, que não aceitou o fim da relação, ainda assassinou o então companheiro da moça e atirou contra si. Não morreu na hora, porém. Ficou dias internado (alguns, no mesmo quarto da ex-namorada, para horror da mãe da menina) antes de falecer.
Foram meses sem sair de casa, em silêncio, vivendo sentimentos confusos como medo e culpa. Tinha ainda resistência em aceitar a nova condição. Por fim, acabou aprendendo a se locomover com a cadeira de rodas e, aos poucos, foi reconstruindo a própria vida. Viveu outro relacionamento, tornou-se mãe e abraçou o ativismo pelos direitos das mulheres com deficiência.
Em 2014, ela, que hoje é finalista do Prêmio Inspiradoras, na categoria Conscientização e Acolhimento, fundou o Movimento Feminista de Mulheres com Deficiência Inclusivass. A iniciativa tem como objetivo criar e monitorar as políticas públicas voltadas às mulheres com deficiência. Trata-se de um grupo especialmente vulnerável à violência doméstica e a abusos em geral, embora haja poucos dados que reafirmem o problema.
Muitas vezes, essas mulheres não conseguem sair de casa para fazer as denúncias. Se um cara botar o pé na minha cadeira, por exemplo, eu não saio do lugar. Uma mulher surda não consegue pedir ajuda. E, mesmo quando saem, encontram barreiras nos locais de acolhimento.
Carol Santos
Uma das conquistas da instituição foi a aprovação de uma lei municipal em Porto Alegre (RS) que prevê que as unidades básicas de saúde disponibilizem equipamentos adaptados para a realização de exames médicos.
Carol também atuou ativamente nas ações de pressão para obrigar que os processos abertos pela Lei Maria da Penha incluam a informação sobre a condição da vítima quando se trata de uma mulher com deficiência. A exigência virou lei em 2019. "Precisamos ter dados para construir políticas", diz.
Este ano foi a primeira vez em que o Atlas da Violência, coordenado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), incluiu esse tipo de informação. O documento mostra que o número de notificações de violência contra mulheres com deficiência chega a ultrapassar o dobro dos registros feitos por homens nas mesmas condições, principalmente quando se trata de deficiência intelectual, física e auditiva.
O despertar para o ativismo
Para compreender a trajetória de Carol até se tornar uma militante feminista pelos direitos das mulheres com deficiência é preciso voltar um pouco no tempo. Passado o período de adaptação, ela sentiu necessidade de buscar informação e também de se expressar. Criou, então, um blog.
"Foi um processo difícil de aceitação para lidar com o corpo desestruturado por uma lesão medular. A falta de informação foi o pior bloqueio, por isso resolvi escrever para alertar outras pessoas", diz.
Ao mesmo tempo, passou a militar pela causa. Em 2013, Carol conheceu a jornalista e cientista política Telia Negrão, fundadora do Coletivo Feminino Plural, organização não governamental feminista de Porto Alegre, que atua para otimizar políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher. "Só a partir daí eu fui entender o que aconteceu comigo", afirma.
Ao entrar para o coletivo, Carol diz que deu o primeiro passo para compreender que o que houve com ela foi resultado de um ato de violência. "Eu escutei outras mulheres vítimas de violência. Meu ex-namorado queria controlar meus passos, meu olhar, as roupas e maquiagens. Eu via aquilo como cuidado, como proteção", lembra.
Para participar das reuniões do Coletivo Feminino Plural, Carol fazia o trajeto de sua casa, na periferia de Porto Alegre, até a região central da cidade de ônibus. Naquele período, o coletivo ocupava um espaço num prédio sem elevador. Ela tinha de ser carregada pelo segurança até o segundo andar.
Conhecer a Carol marcou um antes e um depois na minha vida. Toda quarta-feira, durante um ano e meio, ela vinha estudar feminismo com a gente e nós aprendíamos sobre como é viver com deficiência.
Telia Negrão, fundadora do Coletivo Feminino Plural
Depois das reuniões com o coletivo, ela chegava em casa e buscava mais textos sobre feminismo e empoderamento para estudar. Foi assim que compreendeu a sua situação e viu a necessidade de focar seu ativismo nas mulheres com deficiência.
Do ponto de vista dos direitos das mulheres, o tema da deficiência foi o último a entrar na discussão da diversidade.
Telia Negrão
Para a cientista política, o trabalho de Carol foi e continua sendo fundamental para dar visibilidade às mulheres com deficiência.
Acessibilidade: uma luta constante
Carol sabe na prática que políticas públicas dependem de dados que as sustentem. E que os dados, no caso das pessoas com deficiência, dependem da facilidade ou não que elas têm para fornecê-los.
"Só teremos informações se os locais de denúncia tiverem acessibilidade e contarem com pessoas capacitadas para receber essas mulheres. É preciso lidar ainda com o fato de que algumas não se identificam como uma mulher com deficiência", diz.
Com esse olhar, Carol começou a conferir se os locais que atendem mulheres vítimas de violência em Porto Alegre são acessíveis a quem tem deficiência.
Se a gente não tiver um olhar sob o ponto de vista de gênero, as mulheres ficam de fora das políticas públicas.
Carol Santos
Integrante do Inclusivass, a professora Bruna Schatschineider, de 33 anos, mora em Alvorada, na região metropolitana de Porto Alegre. No ano passado, precisou abrir um boletim de ocorrência por causa das agressões verbais que vinha sofrendo do então namorado.
"Na delegacia da mulher da minha cidade, não tem rampa, nem piso tátil. Também não tem intérprete de libras ou informações em braile", observa. Ela tem deficiência visual e acredita que só conseguiu fazer denúncia e ser bem atendida porque estava acompanhada.
Desde 2018, Bruna faz parte do Inclusivass e já havia visitado locais voltados ao acolhimento de vítimas de violência junto com Carol. Elas e as demais integrantes do Inclusivass levaram uma denúncia ao Ministério Público indicando os endereços que não estavam devidamente preparados para receber esse público.
Depois disso, parte deles se reorganizou. O Centro Estadual de Referência da Mulher Vânia Araújo Machado, por exemplo, foi reformulado e a delegacia da mulher criou uma estrutura especial para as vítimas com deficiência física.
Trata-se de conquistas memoráveis, mas Carol sabe que ainda tem muitos desafios pela frente. Um deles, segundo ela, é fazer com que as pessoas ouçam as mulheres com deficiência e tenham empatia pelo trabalho do Inclusivass. "A minha história se tornou um instrumento para dar voz às mulheres com deficiência, mas não estou sozinha. Já quis desistir, mas minhas companheiras não deixaram."
Sobre o Prêmio Inspiradoras
O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e do Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. São 21 finalistas, divididas em sete categorias. Além de Conscientização e Acolhimento, tem também: Inovação em Câncer de Mama, Informação para vida, Acesso à Justiça, Equidade e Cidadania, Esporte e Cultura e Representantes Avon.
Para escolher suas favoritas, basta clicar na votação a seguir. Está difícil se decidir? Não tem problema: você pode votar quantas vezes quiser. Também vale fazer campanha, enviando este e os outros conteúdos da premiação para quem você quiser. Para saber mais detalhes sobre a votação, é só consultar o Regulamento.
No mês que vem, durante dos 21 dias de enfrentamento à violência, uma série de lives com as finalistas de todas as categorias vai debater este e outros temas relacionados ao universo feminino. Dá para acompanhar as novidades no portal Universa e em nossas redes sociais.
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