Promotora combate racismo e intolerância religiosa na Bahia
A lei é uma só, mas a maneira como é aplicada varia (muito), sobretudo quando estão na mesa diferenças raciais e de gênero. É para combater essas disparidades que trabalha a promotora Lívia Sant'Anna Vaz, 41, finalista do Prêmio Inspiradoras na categoria Acesso à Justiça. "Nós, mulheres negras, não somos vistas e isso impacta no acesso aos nossos direitos", diz.
Soteropolitana, em 2020, ela foi eleita uma das 100 pessoas afrodescendentes mais influentes do mundo por uma premiação anual apoiada pelas Nações Unidas. A nomeação é resultado de sua longa atuação na proteção dos Direitos Humanos. Em seus 17 anos no Ministério Público da Bahia, ela tem criado mecanismos para ampliar o debate sobre racismo, violência contra mulher e intolerância religiosa e facilitar o registro de ocorrências desses crimes.
"Por que a Lei Maria da Penha não consegue proteger mulheres negras do mesmo modo que protege mulheres brancas?"
Lívia Sant'Anna Vaz
Lívia também se dedica à carreira acadêmica na área do Direito, é uma dos juristas integrantes da comissão da Câmara dos Deputados para revisar a legislação sobre racismo no Brasil e faz parte de coletivos voltados para a questão da mulher negra.
Presença feminina e negra na Justiça
"Não existe mulher negra neste país que não tenha experiência e vivência de racismo e sexismo", afirma a promotora. A declaração está respaldada nos números. Divulgado recentemente, o Atlas da Violência de 2021 mostrou que o total de mulheres não negras assassinadas sofreu uma queda de 26,9% entre 2009 e 2019, enquanto o de negras aumentou em 2%. Em 2019, elas representaram 66% do total de mulheres vítimas de homicídio no Brasil.
Por trás desses dados, segundo Lívia, está um problema estrutural. O assunto mal é debatido e pouquíssimo se faz para mudar o cenário. "A gente tem que saber por que as mulheres negras não estão acessando o sistema de justiça, a polícia, os meios de comunicação e as redes de proteção da mesma maneira que as mulheres brancas", alerta.
Um dos motivos é a falta de representatividade dentro das próprias instituições. Ela dá o exemplo de uma reunião em que um dos convidados chegou atrasado e perdeu as apresentações iniciais. Ao final, ele disse que o encontro tinha sido excelente, mas que, na próxima vez, seria interessante o MP mandar um promotor.
Lívia, então, se apresentou como promotora de justiça, constrangendo o homem. "Uma mulher negra no sistema de Justiça é a exceção que confirma a regra da ausência dessas mulheres naquele espaço", diz ela que atua para mudar essa realidade.
Recentemente ela conseguiu, por exemplo, aprovar a criação do Grupo de Trabalho que tem a missão de elaborar um programa de enfrentamento ao racismo nos quadros do Ministério Público da Bahia. "O primeiro grande ganho é reconhecer que o racismo institucional existe", diz a promotora.
Lívia também busca promover ações para fortalecer as mulheres negras dentro do universo jurídico. Ao lado da colega Chiara Ramos, coordenou, por exemplo, a Imersão Juristas Negras.
"Lívia abriu de fato o Ministério Público para o diálogo. É uma pessoa muito comprometida com a causa, sempre buscando uma interlocução junto à sociedade", diz a delegada aposentada da Polícia Civil Jussara Souza, que participou do evento e conhece de perto o trabalho da promotora.
O impacto de Lívia se dá não só nas ações, mas na maneira como se impõe e apresenta, por vezes usando elementos de afirmação da cultura africana, como o torço na cabeça.
Ela trouxe para dentro da instituição a possibilidade de mexer com os preconceitos e de empoderar elementos da cultura negra. Lívia mostra que você pode ser você e tem que ser respeitada na sua fala trazendo todos os elementos que te dizem respeito.
Jussara Souza, delegada aposentada da Polícia Civil
Combate ao racismo e à intolerância religiosa
A atuação da promotora toca em outro problema ainda pouco debatido: a intolerância religiosa e a vulnerabilidade das mulheres dentro desse contexto. As ialorixás (mães de santo) são maioria entre as vítimas de ataques a praticantes de religiões de matriz africana.
Desde 2015, ela coordena o Grupo de Atuação Especial de Proteção dos Direitos Humanos e Combate à Discriminação (Gedhdis) do MP-BA. Em 2018, a iniciativa lançou o aplicativo Mapa do Racismo e da Intolerância Religiosa. A ferramenta permite o registro de denúncias anônimas ou identificadas, que vão direto para as áreas competentes dentro do MP.
Funciona assim: o usuário preenche dados como local, data e informações do agressor, além de informações sobre as vítimas e o tipo de agressão, como por exemplo, impedir acesso a transporte público. O MP entra em contato direto com o autor da denúncia. O serviço funciona apenas para o estado da Bahia e permite pesquisa nos mapas de cada cidade e acesso aos números e tipos de denúncias.
Lívia encabeçou também outras ações para aproximar o Ministério Público do problema, como o projeto "MP e Terreiros em Diálogos Construtivos".
"É muito difícil para esse serviço público compreender as demandas específicas do povo de terreiro". Ela relata dificuldades enfrentadas pelas pessoas de santo como perseguição no transporte público e até mesmo recusa de atendimento em unidades de saúde por preconceito.
Os encontros não se restringem às salas do MP e incluem visitas a terreiros. "A gente leva o poder público para o terreiro para debater os encaminhamentos que deveriam ser promovidos para garantir os direitos das pessoas de religiões de matrizes africanas".
A ialorixá Jaciara Ribeiro, líder do terreiro Abassá de Ogum, afirma que o trabalho de Lívia trouxe muitos avanços no tratamento dos casos de intolerância religiosa na Bahia e destaca a importância da visibilidade da promotora.
Ela dá coragem para as outras mulheres denunciarem e não silenciarem frente ao racismo religioso.
Jaciara Ribeiro, ialorixá líder do terreiro Abassá de Ogum
No final de 1999, o terreiro localizado no bairro de Itapuã, em Salvador, foi invadido e depredado por integrantes de igrejas evangélicas. Muito abalada, a ialorixá Gildásia dos Santos, a Mãe Gilda, mãe biológica de Jaciara, morreu em 21 de janeiro de 2000. O caso foi o primeiro do tipo a ter repercussão nacional e resultou na instituição do Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa. "Lívia tem a sensibilidade necessária para nos acolher e ouvir quando a gente tem as nossas casas invadidas e nossos muros depredados, além de dar orientação e abrir o espaço para a gente denunciar".
Escolhas atravessadas pelo racismo
Nascida e criada em Salvador, caçula de três irmãos, Lívia sempre teve resposta para tudo, como dizia seu pai. Ela conta que a mãe gostava de realizar reuniões de família para discutir os problemas da casa. "Meu irmão não falava nada, minha irmã chorava e eu, com dedo levantado, argumento por argumento ia desmontando o que minha mãe havia dito", lembra rindo.
"Até nossas escolhas são atravessadas pelo racismo", pondera Lívia ao refletir sobre sua carreira. Na adolescência, primeiro pensou em seguir carreira como jornalista, mas o pai chamou sua atenção para a questão racial ao perguntar se ela já tinha visto algum jornalista negro na televisão na Bahia. "Para mim foi um banho de água fria". Então ele sugeriu que ela estudasse Direito, justamente por ter uma personalidade questionadora. "No fim das contas, mesmo sem saber exatamente o que estava me orientando a fazer, meu pai me levou a seguir um caminho que hoje eu considero que é o caminho onde eu deveria estar, fazendo o que eu deveria fazer, como se fosse uma missão".
Sobre o Prêmio Inspiradoras
O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e do Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. São 21 finalistas, divididas em sete categorias. Além de Acesso à Justiça, tem também: Inovação em Câncer de Mama, Informação para vida, Conscientização e Acolhimento, Equidade e Cidadania, Esporte e Cultura e Representantes Avon.
Para escolher suas favoritas, basta clicar na votação a seguir. Está difícil se decidir? Não tem problema: você pode votar quantas vezes quiser. Também vale fazer campanha, enviando este e os outros conteúdos da premiação para quem você quiser. Para saber mais detalhes sobre a votação, é só consultar o Regulamento.
No mês que vem, durante dos 21 dias de enfrentamento à violência, uma série de lives com as finalistas de todas as categorias vai debater este e outros temas relacionados ao universo feminino. Dá para acompanhar as novidades no portal Universa e em nossas redes sociais.
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