Fase avançada do câncer de mama consome 80% dos recursos do SUS para doença
Tratar o câncer de mama em estágios mais avançados é mais penoso para as mulheres e mais custoso para o SUS (Sistema Único de Saúde). Estes tratamentos representam pouco menos da metade dos procedimentos, mas consomem mais de 80% de todo o valor destinado a cuidados com a doença pelo SUS, onde sete a cada dez pessoas com a enfermidade se tratam no Brasil.
Incluindo quimioterapias e hormonioterapias, esses procedimentos debilitam mais as mulheres e, em etapas mais adiantadas da doença, têm menos chance de cura. Os dados são de um levantamento realizado pela Gênero e Número a partir do Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA/SUS), referentes aos anos de 2019 e 2020 e ao primeiro semestre de 2021.
O levantamento de dados faz parte do projeto Câncer de Mama Hoje, da Gênero e Número em parceria com o Instituto Avon.
Entre janeiro e junho 2021, foram pouco mais de 438 mil de tratamentos para as fases mais avançadas da doença, isto é, 48% do total de 914 mil. No entanto, eles custaram 81% (R$ 241 milhões) do total de R$ 296 milhões gastos pelo SUS com a enfermidade. Essa tendência se repetiu ao longo de 2020, primeiro ano da pandemia, quando os gastos com tratamentos para as fases adiantadas custaram R$ 457 milhões de um total de R$ 569 milhões.
Os quatro estágios do câncer de mama estão relacionados com o grau de disseminação da doença pelo organismo e são importantes para determinar as possibilidades de sobrevida da paciente. Obedecendo critérios clínicos e patológicos, a classificação é feita por profissionais de saúde que acompanham o caso.
Em geral, o terceiro e quarto níveis são considerados avançados. No estágio 3, o tumor já está crescendo nos tecidos próximos ou se espalhou para os gânglios linfáticos, estruturas do sistema imunológico localizadas em áreas do corpo como as axilas. No estágio 4, já há metástase, isto é, disseminação para outros órgãos. Os tratamentos nestas fases demandam mais recursos e têm maior impacto na qualidade de vida das mulheres.
O Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima que o Brasil registre mais de 66 mil novos casos de câncer de mama por ano. Ele é o segundo mais incidente entre as mulheres no Brasil, atrás apenas do câncer de pele. Não há dados oficiais no Brasil sobre incidência da doença entre pessoas trans e não-binárias, mas elas também podem desenvolver a doença, assim como homens.
Exames de diagnóstico, como as mamografias, ajudam a rastrear e detectar o câncer de mama precocemente. Dados do SIA/SUS mostram que a quantidade destes procedimentos caiu 40% entre 2019 e 2020.
Na contramão, no mesmo período, os tratamentos para debelar a doença subiram 5%. A realização de quimioterapias e hormonioterapias relacionadas a tumores na fase 3 cresceu 7%, o maior percentual de crescimento entre todos procedimentos para os quatro estágios analisados para essa reportagem.
Menor chance de cura
A queda no número de exames preocupa profissionais de saúde, que já veem neste movimento um possível impacto da pandemia de coronavírus no tratamento de câncer.
O impacto de detectar o câncer de mama em fases mais avançadas é a diminuição na chance de cura. Uma paciente no estágio 3 será tratada para se curar, mas ela tem um risco maior de a doença voltar, na comparação com pacientes que começam a se tratar nos estágios 1 e 2
Daniela Dornelles Rosa, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC)
Oncologista especializada em câncer de mama, Rosa afirma que, além dos custos emocionais de descobrir a doença em estágios mais avançados, há também o impacto econômico sobre os sistemas de saúde e previdenciário.
"No estágio 4, quando há metástase, muitas pacientes têm que se afastar do trabalho e se tratar pelo resto da vida. É possível controlar muitos tipos de câncer de mama por vários anos, mesmo nessas circunstâncias. Mas muitas mulheres terão de entrar no INSS para se dedicar ao tratamento, então o SUS também vai pagar esta conta. Além disso, a profissional vai sair do mercado de trabalho e contribuir menos", explica.
Rosa explica que há semelhanças nos tratamentos adotados nas fases iniciais e nas avançadas, mas, nos casos mais graves, muitas pacientes precisam cuidar também dos efeitos do tratamento. "No estágio 3, a paciente faz procedimentos muito parecidos com aqueles das fases iniciais, mas a chance de precisar de mais quimioterapia, por exemplo, é maior. Com isso, ela pode necessitar de internações para tratar a toxicidade do tratamento, o que também demanda mais investimentos do SUS", complementa.
'Um novo SUS'
A chegada de pacientes com estágios mais avançados exige ainda maior investimento em infraestrutura e na capacitação de profissionais da saúde.
O SUS foi concebido com base na atenção primária e com estratégia de saúde da família. Prevenção e detecção sempre foram a fortaleza do SUS, para evitar ao máximo que os pacientes cheguem na atenção secundária [serviços e procedimentos de média complexidade] e na atenção terciária [alta complexidade], etapas que demandam tratamentos mais especializados e mais caros
Alessandro Bigoni, pesquisador do departamento de epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da Faculdade Getúlio Vargas (FGV Saúde)
Rigoni é um dos autores da nota técnica "Pressões Orçamentárias da Saúde para 2021 e além". O documento, assinado por médicos, pesquisadores e pelo Conselho Nacional de Secretarios de Saúde (Conass), faz dois alertas. Primeiro, sinaliza que o SUS passou a ser subfinanciado a partir de 2016 devido às medidas de austeridade fiscal do governo de Michel Temer (MDB). Segundo, atenta para a insustentabilidade do sistema caso esse cenário seja mantido nos próximos anos.
"Os casos que a atenção primária não conseguir segurar vão gerar uma sobrecarga financeira ao menos pelos próximos cinco anos. A pandemia vai demorar para terminar, mas quando isso acontecer, vamos precisar de um novo SUS", alerta o pesquisador.
"Uma vez que as pacientes comecem a chegar ao SUS com o câncer em estágios mais avançados, é preciso garantir que elas consigam fazer o tratamento da forma mais rápida possível", completa. A Lei dos 60 dias obriga o SUS a oferecer o tratamento nesse prazo, a partir do diagnóstico de câncer. Já a Lei dos 30 dias obriga o SUS a realizar exames de diagnóstico em pacientes com suspeita de câncer nesse prazo.
A Sociedade Brasileira de Mastologia alerta para o aumento da incidência entre mulheres no Brasil e no mundo. O estilo de vida da população, com hábitos mais sedentários e alimentação pouco saudável, bem como gestações mais tardias, são fatores que contribuem para o crescimento dos casos entre mulheres mais jovens.
Beatriz Jardim, epidemiologista e doutoranda pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), lembra também que a mudança no perfil demográfico da população brasileira tem impacto no aumento da incidência do câncer de mama no país, uma vez que a doença é mais frequente em pacientes com mais de 60 anos.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no início do século 21 a expectativa de vida ao nascer para mulheres era de 73 anos. Em 2019, chegou a 80 anos. Mas para Jardim, o aumento nos tratamentos também é um bom sinal: "O SUS até agora tem sido capaz de responder à demanda dos pacientes que atende".
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.