Em livro, autora chama atenção para a questão quilombola no Brasil
O Brasil abriga cerca de 6 mil comunidades quilombolas, mas só 137 têm posse oficial das terras onde vivem, segundo o Observatório Terras Quilombolas da Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI-SP). A conquista da documentação necessária para regularizar essa situação passa por um processo longo, que inclui reconhecimento da cultura desses povos.
Nascida em um dos 32 quilombos ainda sem posse de terra no Território do Sapê do Norte, no Espírito Santo, a assistente social Selma dos Santos Dealdina, 39, é responsável por uma contribuição nessa batalha. Finalista do Prêmio Inspiradoras na categoria Equidade e Cidadania, ela é organizadora de um livro escrito com outras 17 mulheres quilombolas.
A história dos negros está ainda na oralidade e tem de ser escrita. Muitos não foram reconhecidos pelo que fizeram. Então, precisamos recontar essas histórias, dar rostos e nomes a pessoas que foram invisibilizadas pelo racismo ou pela falta de oportunidade.
Selma dos Santos Dealdina
Intitulada "Mulheres Quilombolas - Territórios de existências negras femininas", a publicação foi lançada em outubro de 2020 e, desde então, já vendeu 2,6 mil cópias.
Essa é uma obra de extrema importância para além da literatura porque marca a resistência das populações quilombolas femininas. Como professora de história, mulher e negra, posso dizer que não tem nada que possa reverberar melhor para contar sobre as comunidades quilombolas do que a voz das próprias mulheres desses espaços.
Joice Aziza, historiadora, promotora legal popular e cofundadora do Coletivo de Escritoras Negras Flores de Baobá
Raiz quilombola, com orgulho
A palavra quilombo origina-se no termo kilombo, do idioma dos povos Bantu, originários de Angola, e significa local de pouso ou acampamento. Foi assim que os negros escravizados batizaram os redutos onde se reuníam aqueles que conseguiam escapar.
Com o fim da escravidão, esses grupos se mantiveram nesses locais cuja posse reivindicam. Além da relação com o território, ainda hoje as comunidades remanescentes dos quilombos guardam fortes heranças culturais.
Ao longo do tempo, porém, sofreram diversas tentativas de destruição e desapropriação. Somente em 2003 um decreto federal regulamentou os procedimentos para identificação, delimitação e titulação dessas terras.
Selma nasceu no quilombo Angelim III, mas hoje a comunidade que chama de casa é a vizinha, Morro da Arara. É entre aquele lugar e Brasília, onde atua como secretária administrativa da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), que ela vive.
Não passou a vida toda na região. Por causa das dificuldades de sustento, a família dela se mudou para a cidade de São Mateus quando ela tinha 11 anos. Selma conta que sua mãe, no entanto, não deixou os costumes morrerem. "Ladainhas, festas no terreiro, a gente nunca perdeu esse elo com a roça. Minha mãe nunca deixou", diz.
A mudança para a cidade também não foi fácil. Selma lembra que, ao chegar lá, lavava vasilhas para algumas pessoas em troca de comida. Também não comia o lanche da escola para levar para os irmãos menores em casa. "Minha mãe jogava mais água para render e ela dizia que não tinha fome. Era incrível aquilo, ela nunca tinha fome", emociona-se.
Com a mãe, Selma idealizou o Festival do Beiju, que tinha o objetivo de divulgar as tradições quilombolas por meio da culinária e de suas manifestações folclóricas. A primeira edição do festival foi em 2003, em São Mateus, e elas o produziram por outros dois anos.
A festa foi um marco da pauta quilombola no Espírito Santo e virou referência no Brasil por preservar nossa identidade. Eu nunca tive dúvida de que sou uma mulher preta quilombola. Mesmo na cidade, essa identidade sempre foi muito forte em mim.
Selma dos Santos Dealdina
Engajamento pelos direitos dos negros
Foi também com a mãe que Selma conheceu os movimentos sociais. Aos 7 anos, participou de um evento em protesto pelo assassinato de um trabalhador rural sem terra.
Essa vivência levou a capixaba a atuar no movimento estudantil e a trabalhar em projetos em prol dos direitos e da cultura dos negros. Em Vitória, capital do Espírito Santo, onde viveu e cursou a faculdade, participou de projetos importantes, como a revitalização da vida cultural no centro da cidade, no final dos anos 2000.
O convite para escrever o livro Mulheres Quilombolas veio em 2017, e foi feito pela filósofa Djamila Ribeiro. Ela coordenou a publicação, que marcou o lançamento do Selo Sueli Carneiro e saiu pela editora Jandaíra. "Djamila me pediu para escrever a narrativa das mulheres quilombolas. Eu disse que topava o convite, desde que não escrevesse sozinha. Essa luta é coletiva", afirma.
Um dos capítulos do livro foi escrito por Carlídia Pereira de Almeida, engenheira agrônoma e mestre em ensino de relações Étnico-Raciais. Pertencente ao quilombo Lagoa do Peixe, que fica no município de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, ela escreveu sobre sementes crioulas. "Tenho muita gratidão à Selma pelo convite para participar do livro", diz Carlídia.
"As sementes crioulas foram tema do meu trabalho de conclusão de curso na graduação. Na universidade, sempre tive a preocupação de levar o meu quilombo para aquele espaço. É importante esse assunto estar também no livro, que traz uma diversidade de saberes e fazeres ancestrais", afirma.
A multiplicidade de temas presentes no livro inclui ainda a batalha das mulheres quilombolas contra a violência doméstica e os desafios que elas enfrentam ao ingressar nas universidades.
"O livro traz mulheres de várias faixas etárias, diferentes formações universitárias ou mesmo sem uma trajetória acadêmica, o que não as impede de ter histórias relevantes para contar", observa Selma. "Somos todos quilombolas, mas cada quilombo tem sua particularidade", destaca.
Por causa da pandemia de covid-19, não houve um lançamento presencial e esse agora é o objetivo de Selma. Ela espera reunir-se com as outras 17 coautoras da obra para uma roda de conversa com convidados. E revela um sonho: ver todas elas estampando uma capa de revista ou participando de um programa de televisão de grande audiência. "Devemos conquistar esses espaços porque as pessoas precisam nos conhecer. As mulheres quilombolas produzem coisas lindíssimas", afirma.
Selma já tem planos para novos projetos. "Sou apaixonada por narrativas e quero me dedicar a escrever mais sobre as negras e negros quilombolas, mas também pescadores, ribeirinhos, camponeses. Quero contribuir para tirá-los da invisibilidade", finaliza.
Sobre o Prêmio Inspiradoras
O Prêmio Inspiradoras é uma iniciativa de Universa e do Instituto Avon, que tem como missão descobrir, reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que se destacam na luta para transformar a vida das brasileiras. São 21 finalistas, divididas em sete categorias. Além de Equidade e Cidadania, tem também: Esporte e Cultura, Inovação em Câncer de Mama, Informação para Vida, Conscientização e Acolhimento, Acesso à Justiça, e Representantes Avon.
Para escolher suas favoritas, basta clicar na votação a seguir. Está difícil se decidir? Não tem problema: você pode votar quantas vezes quiser. Também vale fazer campanha, enviando este e os outros conteúdos da premiação para quem você quiser. Para saber mais detalhes sobre a votação, é só consultar o Regulamento.
No mês que vem, durante dos 21 dias de enfrentamento à violência, uma série de lives com as finalistas de todas as categorias vai debater este e outros temas relacionados ao universo feminino. Dá para acompanhar as novidades no portal Universa e em nossas redes sociais.
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