Marília Mendonça abriu caminho para mulheres cantarem sobre cachaça e motel
Na vida a gente sempre tem aquela amiga que começa tudo antes. Que é a primeira a viajar sozinha, a primeira a transar, a primeira a tomar um porre. É aquela que puxa a fila enquanto as outras tomam coragem. Nesta sexta-feira (5), todas nós, mulheres, perdemos uma amiga, aquela que deu a cara para bater por nós, que escreveu e cantou aos quatro ventos tudo o que os homens aprontavam desde que o mundo é mundo, mas que, para as mulheres, sempre foi proibido ou motivo de vergonha na família.
A morte precoce, aos 26 anos, de Marília Mendonça num desastre de avião silencia a compositora e cantora que trouxe a mulher para o front no universo da música sertaneja, historicamente dominado por temas como traição, dor de corno, bebedeira, histórias de amizade, causos, etc., sempre sob a perspectiva masculina.
No início dos anos 2010, junto com outras cantoras do sertanejo, como Nayara Azevedo e a dupla Maiara & Maraísa, Marília estendeu a bandeira do feminejo, uma espécie de resposta ao sertanejo macho, em que a mulher era retratada como submissa, traidora ou objeto de desejo. Era chegada a hora de retrucar, dar o troco, sentadas numa mesa de bar, por toda uma vida de letras que não as representavam.
Marília, que tinha começado a carreira na música compondo para homens, arrebentou com sua primeira música própria em 2016, "Infiel", que ganhou logo de cara milhões de reproduções nas plataformas de streaming. Um ano depois ela já estava na lista da revista "Forbes" entre as pessoas mais influentes do Brasil abaixo de 30 anos.
Em 2019, foi a artista mais visualizada no YouTube, ganhou até prêmio no WME Awards por esse feito. Não foi receber o troféu por conta da agenda, uma das mais lotadas do showbusiness nacional.
Em 2019 e 2020, Marília foi a artista mais ouvida do Spotify Brasil, uma marca que só ajudou a elevar seu parâmetro de cachê, um dos maiores praticados no país —algo na casa dos R$ 500 mil.
"Ela foi imprescindível para ultrapassar a barreira do machismo do meio, tanto como compositora quanto como cantora. Teve filho, se apaixonou, chorou, cantou e foi uma das maiores artistas femininas do Brasil. O legado que ela deixa para as mulheres na música é uma das maiores conquistas", diz Fátima Pissarra, CEO da Mynd, uma das maiores agências de marketing de influência do Brasil e sócia do WME Awards, único prêmio dedicado às mulheres da música no país.
Neste ano, para a premiação, estávamos negociando uma possível participação do novo projeto de Marília com as amigas Maiara & Maraísa, o show As Patroas. Com apresentações marcadas para 2022, certamente seria mais um estouro de bilheteria, levando não somente o trio ao topo da cadeia da música, mas todas as mulheres da indústria; cantoras, empresárias, técnicas, jornalistas, radialistas, compositoras, instrumentistas, entre outras profissões em que as mulheres continuam sendo minoria ou invisibilizadas.
O sucesso de Marília, era o sucesso das mulheres da indústria, era uma comprovação de que, sim, a mulher pode chegar lá.
Apesar do sucesso de artistas como Marília nos últimos anos, ainda há muita mudança pela frente antes que o setor consiga atingir uma equidade de gênero. Segundo pesquisa da UBC (União Brasileira dos Compositores) divulgada em março de 2021, as mulheres representam apenas 8% dos autores, 15% dos intérpretes, 7% dos produtores fonográficos e 6% dos músicos cadastrados. Pelo viés dos valores recebidos referentes a direito autoral, as mulheres representam 9% do total, o que significa que a cada R$ 100 distribuídos, as mulheres recebem R$ 9.
Para mudar é preciso de pontas-de-lança, como Marília foi. Uma vida de conquistas, de recordes, de feitos incríveis, interrompida no auge. Que Nara Leão, Cássia Eller, Elis Regina, Beth Carvalho, Dona Ivone Lara, Helena Meirelles, Clara Nunes, Elizeth Cardoso, Clementina de Jesus, Ângela Maria e outras anjas da música brasileira recebam Marília com festa e toda a reverência que ela merece.
E que, por aqui, seu filho, seus familiares e seus amigos encontrem forças para seguir. RIP, grande rainha.
*Claudia Assef, 47, é jornalista e cocriadora da plataforma Women's Music Event, que faz uma conferência e uma premiação anual dedicadas às mulheres da indústria musical no Brasil
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