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Advogada supera abuso com poesia e cria mentoria para novas escritoras

A advogada e escritora Hosana Heitz Costa - Arquivo pessoal
A advogada e escritora Hosana Heitz Costa Imagem: Arquivo pessoal

Ed Rodrigues

Colaboração para Universa

07/11/2021 04h00

Após alguns relacionamentos abusivos, a advogada baiana Hosana Heitz Costa, 28 anos, encontrou na poesia a superação para voltar a se expressar como mulher. A escrita, segundo ela, ajuda a transpor os problemas. O resultado foi a publicação de seu primeiro livro e a criação de uma mentoria que auxilia novas escritoras. Nesse trabalho, ela recebe mulheres que querem começar a escrever, coordena exercícios de criatividade e rodas de leitura, entre outras atividades.

A mentoria faz com elas enxerguem na escrita uma saída para a ansiedade, a timidez, e até questões mais delicadas, como relacionamentos abusivos. Tudo mostrando como as palavras podem permitir que elas se expressem livremente.

Hosana se formou em direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz, em Ilhéus. Ela nasceu em Itamaraju, cidade a 467 km de Salvador, mas nunca morou lá. Passou a infância desde recém-nascida entre as cidades de Teófilo Otoni, em Minas Gerais, e Teixeira de Freitas, na Bahia. Aos 17 anos, saiu da casa de seus pais e foi morar em Itabuna, também na Bahia, onde viveu até os 25 anos. Fez faculdade, viveu amores, se tornou adulta e teve uma filha, hoje com 8 anos de idade.

"Depois de formada, saí do interior e fui morar em Salvador, onde enfrentei a jornada tripla da mulher brasileira, conciliando trabalho, maternidade solo e ser mulher. Em 2020, no começo da pandemia, fui morar com minha filha na cidade que apelidei de marco zero do meio do mundo, Macapá (AP), às margens do rio Amazonas, no calor amazônico. Nesse lugar, meu livro começou a tomar corpo e forma. No começo de 2021, vim para as margens do Velho Chico, em Petrolina (PE), onde resido atualmente", lembra.

A Universa, Hosana conta que é especialista em psicologia do direito e direito penal e criminologia, mas acrescenta que a arte a pegou pelo braço e não mais soltou. "Sou escritora, faço parte de um grupo de teatro da cidade vizinha, Juazeiro (BA), e tento passar um pouco do que aprendi para outras mulheres que desejam escrever ou já escrevem, através de uma mentoria de escrita criativa", diz.

Espírito de autora

A literatura entrou na vida da advogada ainda na infância. Ela lembra que sempre foi uma leitora incansável. Entre as estantes da biblioteca da escola, aos 8 anos, Hosana leu "Bisa Bia Bisa Bel", de Ana Maria Machado, e depois tentou entender "A hora da estrela", de Clarice Lispector.

"Aquele livro de Clarice me inaugurou de alguma forma como escritora, pois a forma com que ela escreve me despertou algo naquele momento, que eu confesso não saber o que é até hoje. Não entendi nada sobre 'A hora da estrela', pois era criança. Reli ano passado para um encontro de clube de leitura e psicanálise. Acredito que todo escritor está em constante formação através da leitura de outros escritores, então posso dizer que minha relação com a literatura começou pela leitura primeiro, depois com os atravessamentos da vida que motivam minha escrita", afirma.

A advogada e escritora Hosana Heitz Costa - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
A advogada e escritora Hosana Heitz Costa
Imagem: Arquivo pessoal

A advogada começou a escrever na adolescência. Os textos encontravam refúgio nos cadernos, mas sempre alguém da família lia escondido. E essa invasão da intimidade a feria. "Me sentia muito exposta. Então, fiz um blog, que não existe mais, em que eu escrevia textos, e trocava figurinhas com outras pessoas que também escreviam. Um dia, meu pai descobriu esse blog, até hoje não sei como, e em uma reunião com a diretora da escola onde eu estudava, por alguma traquinagem minha, ele revelou que havia compartilhado com a diretora o meu blog. Me senti exposta de novo, mas eram duas pessoas muito importantes para mim falando que tinham gostado do que eu escrevia. Então, de alguma forma, me senti também validada."

Quando eu engravidei, passei por uma situação muito forte e dolorosa, e parei de escrever. Fiquei assim por pouco mais de três anos, até o dia em que eu parei de amamentar e escrevi uma carta para minha filha. Foi quando eu finalmente voltei a escrever. Inclusive, essa carta foi lapidada para compor um dos textos do meu primeiro livro.

Relações tóxicas

Foi na poesia que Hosana Heitz pôde voltar a se expressar como realmente desejava. Escrever virou uma necessidade prazerosa e uma ferramenta de superação na vida dela. A escritora acumulou mais de uma relação abusiva. Muitas dessas relações, como em tantos outros relacionamentos, só foram percebidas como tóxicas após terem chegado ao fim.

"Posso dizer que enquanto eu não elaborei algumas questões, enquanto não me dei conta do que se repetia em minhas relações, entrei em vários relacionamentos abusivos. Em qualquer tipo de abuso, a vítima não se dá conta, no momento, que está sofrendo um tipo de violência."

Eu me dei conta dos abusos anos depois de tê-los sofrido, e ainda hoje eu descubro uma coisa ou outra que era uma forma de abuso psicológico. Por exemplo, algo que ainda repercute em mim, é duvidar de minha própria sanidade e percepção.

Houve uma época em que Hosana acreditou que tinha alguma doença mental. Atualmente, acrescenta ela, tem certeza de que essa sequela decorre de manipulações sofridas no passado.

"Isso era uma das constantes que se repetiram nos relacionamentos que vivi. Mudava o personagem, mas a cena sempre era a mesma: manipulação da realidade para ocultar mentiras, distorção das coisas que eu dizia, brigas imensas e com muito barulho, nas quais o motivo inicial desaparecia, e estava lá eu pedindo desculpas por alguma coisa que foi criada ali na hora, entre outras coisas."

A violência psicológica é muito sutil. Ela não deixa vestígios materiais, porém, repercute ao longo da vida, em tudo que fazemos ou vivemos, se a gente não cuidar das sequelas. São como socos, mas o hematoma fica por anos e anos, se a gente não cuida, vai doer a vida inteira.

'Escrever um livro é correr um risco'

A escritora superou suas mazelas e conseguiu um reposicionamento. Ela conta que "morreu e renasceu". E esse momento foi importante porque abriu seus olhos para várias coisas: como descobrir realmente o que fazia parte dela; do que realmente gostava de fazer; e do que não gostava também.

Hosana descobriu seus limites e, atualmente, percebe com clareza o que não faz bem em uma relação.

Eu não preciso aceitar o que não me faz bem. É muito importante identificar isso. A coragem de arriscar, escrever um livro e publicá-lo, é correr um risco. Me descobrir na escrita foi um grande passo na realização de um sonho de menina, e tem sido uma experiência incrível vivenciar as coisas que esse livro tem trazido.

Logo na abertura de "Com cheiro de café amargo" (editora Penalux) , a autora diz que a escrita é uma necessidade e que escreve para poder viver depois. É uma obra que fala de amor, mas não é um livro romântico, ressalta Hosana.

"É um livro que fala sobre o amor, sobre o feminino, sobre como algumas coisas que me atravessaram, sobre um conhecimento de si... Ou melhor, um completo desconhecimento de si, que dá espaço para que coisas aconteçam. Trato do amor como um afeto que a gente tenta dizer o que é, mas nunca consegue ao certo. Seja esse amor por quem for, por nós mesmos ou pelos outros, todos esses outros que surgem ao longo da vida."

'Curso pode servir para tudo na vida'

Um trabalho realizado com a mentoria de novas escritora foi uma forma que a advogada encontrou de retribuir todas as coisas boas que tem colhido por meio da literatura.

Hosana quer que outras mulheres se sintam potentes com sua forma de se manifestar no mundo e nas suas próprias vidas.

Thaynara - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Thaynara é aluna da mentoria com a escritora Hosana Heitz Costa
Imagem: Arquivo pessoal

"Que sintam que é possível sim. Que não existe um 'lugar de escritora' e que escrever pode pertencer a qualquer pessoa. Eu proponho um processo de abertura criativa, e isso é bom não apenas para quem deseja escrever, mas pode servir para tudo na vida. A mentoria consiste em quatro encontros, inicialmente. Caso tenha necessidade, marco de forma avulsa, por meio de videoconferência, de forma individual."

Thaynara Cerra está entre as novas escritoras que participam do curso. Para ela, ter a chance de trabalhar em editora e poder retratar seus sentimentos por meio das poesias é um grande sonho. "Sempre gostei de escrever e quando tive a oportunidade de participar da mentoria, decidi aproveitar. Ela é uma ótima pessoa e escritora, também", afirma.

Thaynara revelou ter sofrido bullying quando era criança por usar óculos. Depois de adulta, precisou do acessório novamente e, em certos momentos, as lembranças dos abusos voltam a ecoar dentro dela. "Estou superando com o tempo. E vou vencer isso. Essa mentoria está me ajudando a ter mais foco, clareza e persistência no meu sonho de ter um livro de minha autoria."