Mãe trans é indenizada em R$ 60 mil após ser impedida de registrar filho
Em 2018, a assessora parlamentar Ágata Mostardeiro, 28 anos, abriu o jogo para a então companheira: apesar de na época se identificar como homem cisgênero, queria se expressar como mulher e passar pela transição, incluindo usar hormônios femininos. O casal, porém, queria ter filhos. Sabendo que o tratamento hormonal diminuiria a chance de uma concepção natural, decidiram conceber uma criança antes. Na sequência, Ágata iniciou o processo de transição.
O nascimento do pequeno Bento foi uma alegria para a nova família. Até chegar no cartório para registrá-lo. Lá, Ágata, que já tinha mudado seus documentos para o gênero feminino, ouviu que a criança "tinha que ter pai perante a lei" e, mesmo tendo participado da concepção biológica do filho, foi impedida de registrá-lo.
Em 2020, ela conseguiu ser incluída como mãe biológica no registro dele. Na segunda-feira (1º), após uma longa batalha judicial, a Justiça condenou o estado do Rio Grande do Sul a indenizar a família por danos morais em R$ 60 mil. Cabe recurso da decisão.
Juíza pediu laudo médico da genitália
Ao ouvir no cartório que não poderia registrar o filho recém-nascido, Ágata diz ter ficado "completamente paralisada". "Perguntei se poderia usar meu nome antigo porque só queria resolver aquela situação. Mas não dava, era um documento morto", relembra.
Ao entrar na Justiça para pedir a possibilidade do registro, recebeu o pedido da então juíza do caso para que apresentasse laudo médico de sua genitália, o que ela se negou a fazer por considerar uma afronta à sua dignidade.
Primeiro caso de dupla maternidade biológica do país
Até então, Ágata constava na certidão de nascimento como mãe socioafetiva, como se fosse mãe adotiva da criança. Somente dois anos depois, em 2020, após mais uma ação na Justiça, ela foi reconhecida como mãe biológica de Bento.
A sentença veio na esteira de uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de 2018, que permitiu a pessoas trans que troquem de nome e sexo no registro civil sem precisar de decisão judicial ou de se submeter a uma cirurgia de redesignação sexual.
Ao conceder a Ágata o direito do registro, o juiz do caso afirmou, na época, que "a verdade biológica sempre que possível deve constar no assento de nascimento da criança".
Desgaste emocional ao ver filho internado por um mês
A indenização por danos morais foi dividida em R$ 25 mil para Ágata, R$ 25 mil para sua companheira e R$ 10 mil para o filho. A Justiça considerou que a família inteira foi impactada pelas falhas do processo, inclusive a criança, como conta a mãe.
"Meu filho ficou um mês internado porque pegou duas bactérias multirresistentes no hospital, muito difíceis de tratar. Não consegui colocar ele no plano de saúde por não estar registrado em meu nome e, por isso, não pude levá-lo para um hospital melhor", diz Ágata.
"Ele precisava desse cuidado logo que nasceu. Ficou em um hospital em uma área comum, com outras crianças com doenças respiratórias que não estavam isoladas. Me causou muito dano não poder ter acesso à saúde particular naquele momento."
Além disso, afirma, veio também o desgaste emocional por pensar que a culpa era sua por ter transicionado. "Teve esse abalo psicológico. Me questionava se, por ser quem eu sou, trazia prejuízos pro meu filho. Pensava: 'Estou dificultando a vida dele?' Até que entendi que não havia cometido nenhum erro. O que fizeram com a gente foi um absurdo, ninguém tem que passar por isso."
"Indenização significa que famílias diversas existem", afirma advogada
A advogada de Ágata, Gabriela Ribeiro de Souza, comemora a decisão de indenizar a mãe por significar que "famílias diversas existem" e que "nenhum preconceito será tolerado".
"A Constituição Federal e os tratados internacionais que o Brasil assina garantem a preocupação com a dignidade da pessoa humana. É um basta que se dá ao preconceito e um aviso: as famílias possuem múltiplas formações, não apenas a heterossexual. Todas elas gozam dos mesmos direitos e merecem respeito e dignidade", diz.
A mãe vê na indenização não apenas um reconhecimento da falha do Estado, mas também uma maneira de evitar que outras famílias passem por situação parecida.
"É um pequeno passo para, daqui a pouco, termos leis que facilitem os registros feitos por pessoas trans, que preparem os cartórios. Estamos falando sobre o direito de existir. Realmente espero que isso seja corrigido para que ninguém mais tenha esse dano."
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