'Shape lindo': afinal, por que exaltar perda de peso de Marília é errado?
Pelo menos dois posicionamentos de figuras públicas da TV sobre a morte da cantora sertaneja Marília Mendonça geraram críticas pelo tom gordofóbico e machista. Em seu programa de domingo, o apresentador Luciano Huck evidenciou que Marília e as cantoras Maiara e Maraisa estavam "magrinhas" na última vez em que a sertaneja esteve cantando no palco da atração.
Nesta segunda-feira, Ana Maria Braga fez um comentário no "Mais Você" sobre a despedida precoce da cantora e destacou que Marília havia feito esforços para chegar em uma forma física "linda". "Ela fez tanto para chegar nesse shape lindo, emagreceu, criando um caminho que fazia sentido para ela", disse.
Falar sobre o corpo da mulher e, principalmente, valorizar a perda de peso como uma conquista são comportamentos enraizados na pressão estética (ou seja, a busca pelo "corpo perfeito", visto como magro) e na gordofobia (preconceito sofrido por pessoas gordas, reproduzindo estereótipos e dificuldades de acesso e oportunidades). Mas esta, na opinião da criadora de conteúdo digital e estudiosa de narrativas femininas Polly Oliveira, que fez publicações no Instagram sobre o tema, é uma postura errada e violenta.
Marília tinha um dom nato, compunha desde os 14 anos. Mas, tudo isso é apagado para se falar da estética dela. Falar que agora que ela tinha conseguido ficar bonita ela morre é muito violento.
Falar da perda de peso de Marília é gordofóbico?
As homenagens e reverências a Marília Mendonça ganharam críticas à medida que a aparência dela —que havia emagrecido nos últimos meses— se destacou entre os comentários que circularam pela mídia.
Nas redes sociais, os usuários se posicionaram contra os discursos de Ana Maria e Huck. Também questionaram texto publicado pela Folha de S.Paulo em que o colunista destacou que Marília era "gordinha e brigava com a balança"; o próprio jornal publicou outro texto, da colunista Bianka Vieira, sobre as problemáticas de o talento da sertaneja ter sido ofuscado pela questão da aparência.
Polly Oliveira, que é criadora de conteúdo sobre amor-próprio feminino, explica que o mecanismo serve à manutenção de estereótipos e "padrões de beleza" que prendem as mulheres à ideia de que só serão aceitas se estiverem magras.
A fala de Huck reforça que, para uma mulher, não basta ter voz bonita, ser talentosa. É preciso que seu corpo 'fale' primeiro. Com isso, quantas mulheres cheias de talento vão simplesmente recuar esperando ter 'tal corpo' para ir atrás de seus reconhecimentos?
Construção
A ativista Rayane Souza, que participa do projeto Gorda na Lei e que luta pelo fim da gordofobia na área jurídica, avalia que a construção antropológica que coloca o corpo gordo como "feio, incapaz, de quem não tem talento", entre outros estereótipos, faz com que as pessoas se sintam à vontade de falar do peso e, principalmente, do emagrecimento, alheios.
O que Huck falou foi um dos maiores absurdos que já ouvi durante todos os anos que levanto essa pauta. Mostra o quanto nossa sociedade é doente, porque a mulher nem no momento da sua morte deixa de ser julgada por sua aparência.
"Em pleno 2021, quando estamos falando de diversidade, de reconhecer valores que transcendem os padrões, isso acontece vindo de um dos maiores comunicadores do país, na maior emissora de TV do país. Estamos falando de uma mulher que trouxe a temática do empoderamento feminino em sua música e poesia; no dia de celebrar a vida que ela teve, se fala do peso dela."
Pressão estética, gordofobia e machismo entram em pauta
Para Polly, a apresentadora do "Mais Você" reproduziu machismo em sua observação, ainda que, ela mesma, por ser mulher, também sofra com esse aspecto da sociedade. "Nós fomos convencidas de que há um padrão de corpo. E todas nós somos vítimas da pressão estética, em graus diferentes", detalha. "Mas, enquanto homens sertanejos gordos, por exemplo, não sofrem pressão para emagrecer, nós somos convencidas de que precisamos disso para ter sucesso."
Quando não há submissão a essa forma de pensar, avalia Rayane, é possível que a mulher gorda seja alvo de observações críticas que a reduzem a apenas um corpo. "Na mídia, a mulher gorda ou é safada ou engraçada; o cara, ou desastrado ou engraçadão. As pessoas acabam falando desses corpos com muita naturalidade, como se fossem públicos e todo mundo pudesse opinar sobre eles. Isso se chama gordofobia estrutural."
Vale dizer que Marília Mendonça dividiu com seus seguidores no Instagram relatos sobre o processo de perda de peso. Em um vídeo publicado por ela antes do acidente, a cantora aparece brincando com o fato de precisar se privar das comidas mineiras para manter uma rotina de exercícios e dieta, ligadas à conservação de sua forma física. "Isso é o que a indústria do emagrecimento faz com a gente. Faz com que a gente acredite que precisa sofrer para ter determinado corpo", contextualiza Polly.
Como sair desta lógica e respeitar o próprio corpo?
Driblar a lógica que liga os valores femininos à aparência e, por extensão, à magreza, requer união e empenho ligado à naturalização dos corpos reais, diz a ativista.
"Talvez seja entender primeiro que, qualquer que seja o corpo que tenhamos, vamos ser atacadas, infelizmente, ou pela pressão estética ou pela gordofobia. Com isso, precisamos estar prontas para a batalha, entendendo que isso não define quem somos. E, de maneira mais prática, vale parar de seguir pessoas que ficam atrás da estética perfeita, nas redes sociais, e acompanhar aquelas que tenham corpos parecidos com os nossos", comenta Rayane. "É necessário fazer um trabalho de autoestima."
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