A mulher negra por trás da narração do filme sobre o Atlético-MG
Uma mulher preta, com formação em contabilidade e, hoje, atuante, na área de vendas. Um perfil, em tese, bastante comum dentro da sociedade brasileira. Mas, definitivamente, não a opção óbvia para ser a voz condutora do filme sobre a história de mais de 100 anos de um dos principais clubes do futebol do país.
Foi sob essa perspectiva que Carol Leandro recebeu o convite de Helvécio Marins Jr. para narrar "Lutar, Lutar, Lutar", que entrou em cartaz na quinta-feira, em circuito nacional, relatando a trajetória do Atlético-MG de 1908, ano da sua fundação, a 2014.
"Minha reação ao convite foi de descrédito total. Nos acostumamos com muita coisa da sociedade, como o racismo estrutural. Ele me revolta, mas eu sei que acontece", diz Carol, 31 anos, moradora de Contagem (MG).
Eu não tinha a menor expectativa de passar por uma coisa dessas, nunca fui a imagem da atleticana que a sociedade desenhou. E a mulher negra vende menos midiaticamente.
As palavras de Carol refletem uma realidade. Cinema e futebol chegaram praticamente juntos ao Brasil, no fim do século 19. Pilares importantes da representatividade da cultura, elas também refletem o racismo, com a baixa representatividade dos negros em cargos de relevância e decisão, bastando lembrar que Marcão, hoje, à frente do Fluminense, é o único técnico negro entre os 20 clubes do Campeonato Brasileiro.
A situação é pior para as mulheres negras. Um estudo do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa apontou que no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro, de 2002 a 2017, apenas 2,63% das indicadas ao prêmio de melhor atriz eram mulheres pretas, com um índice de 3,8% na disputa da premiação dada para papéis coadjuvantes.
É nesse contexto de baixa representatividade que "Lutar, Lutar, Lutar" começou a ser pensado no começo dos anos 2010, por Helvécio Marins e Sérgio Borges. A ideia ganhou impulso com a conquista do título da Libertadores de 2013 pelo Atlético-MG. Em 2014, quando o projeto saiu do papel e suas imagens foram captadas com a participação do roteirista Fred Melo Paiva, o clube ainda venceria a Copa do Brasil.
Nos sete anos que se passaram entre o início da produção e o seu lançamento nas telas, muita coisa mudou —inclusive a sociedade. "A gente chamava cruzeirense de viado e cantava 'Maria, eu sei que você treme", relembra Fred. "Não existia na nossa cabeça, três homens brancos, em 2013, preocupação com a representatividade das mulheres. Houve uma evolução pessoal de cada um de nós", acrescenta.
Coletivo feminista como resposta ao sexismo no futebol
Também foi nessa época, entre as conquistas do Atlético-MG e a finalização do filme, que surgiu o coletivo feminista Grupa, como resposta ao sexismo no lançamento do uniforme do clube em 2016, quando mulheres desfilaram de biquíni.
Para Carol, a Grupa entraria em sua vida um pouco depois disso. Filha de pai cruzeirense, mas com um tio atleticano que a levava aos estádios, passou, posteriormente, a ir ao Mineirão e ao Independência sozinha. Até entrar, em 2018, no coletivo, que agrega mais de 120 mulheres em grupos nas redes sociais, embora suas relações e componentes não se resumam a esse âmbito. E ela destaca a importância da Grupa para, simplesmente, dar a segurança às mulheres de frequentarem as arquibancadas sem medo.
Tem muitas meninas com medo de ir ao estádio. E nós temos acolhimento. Lá, nada importa para elas, a minha sexualidade... Os meus melhores amigos eu formei na arquibancada.
A presença nas arquibancadas levou Carol a ser uma das personagens selecionadas para um filme, ainda não finalizado, pelo cineasta Lobo Mauro que retrataria a rivalidade entre torcedoras de Atlético-MG e Cruzeiro, time da irmã da narradora. Foi ele o responsável por apresentar Carol, personagem de uma foto icônica da vibração da torcida, a Helvécio, que a definiu como narradora do filme.
O provável ineditismo de colocar uma mulher negra narrando um filme de futebol veio com outro, dela própria, que nunca havia participado de qualquer produção cinematográfica. Foi preciso, então, fazê-la desaprender a emular o estilo de um repórter de televisão, que viu durante toda a vida. "Eu tinha certeza de que ela precisava falar do jeitinho dela. Mudamos um pouco o texto para ela se sentir à vontade", diz Helvécio.
Usar a voz para narrar um filme também foi uma vitória pessoal para Carol.
Sempre tive problema de autoestima com a minha voz, por ela ser mais grossa. No início, me concentrava e parecia que estava narrando uma marcha fúnebre.
Representatividade para o torcedor
A ideia da direção com a presença de Carol foi dar voz às pessoas comuns e representatividade ao torcedor. "O filme escolhe uma mulher para ser a voz de Deus, uma deusa preta. Ela tenta fazer uma narração profissional, mas ela não é. E isso traz um frescor", avalia Lobo.
Ela é uma voz que tem urgência para estar nesse lugar. Se encaixa na estética da mensagem do filme, com um viés humanista, voltado para o torcedor, algo que fazemos, inclusive, com o posicionamento das câmeras.
Helvécio Marins Jr.
A dificuldade de ver a mulher como atuante na sociedade —e ainda mais em um ambiente como o do futebol— provoca até mesmo o risco do apagamento da história, como no caso da trajetória do Atlético-MG, como relembra Fred, que reservou um trecho importante do seu roteiro para contar uma pouco conhecida história feminina no clube.
Afinal, foi das mãos de Alice Neves, mãe de um dos fundadores do clube, que foram costurados os primeiros uniformes e bandeiras do time. Além disso, ela chegou a fundar uma torcida organizada feminina.
"A mulher é algo intimamente ligado à história do Atlético. Dona Alice Neves ajudou a tornar possível a história do clube. Então, juntou essa importância com a consciência pela luta das mulheres", diz.
Linha de Três
Atuante na Grupa e presença constante nos jogos do Atlético-MG, Carol também dá outros passos no terreno do futebol, tendo criado, ao lado de outras amigas, o Linha de Três, canal no YouTube em que elas registram as impressões sobre o time em transmissões antes e após os jogos.
E como boa atleticana que carrega o legado de Dona Alice, também dá seus passos para ampliar a presença do futebol feminino. Ex-jogadora do Prointer, um time amador de Belo Horizonte, ela trocou as chuteiras pela função de treinadora, estando hoje à frente do time de futsal Las Chicas, fruto de um projeto social no Morro do Papagaio, uma comunidade na região centro-sul da capital mineira.
O trabalho já rendeu frutos, como Sabrina, de 17 anos, hoje lateral-direita titular do América-MG. Uma conquista pessoal também para Carol, hoje a voz de "Lutar, Lutar, Lutar". "Como mulher negra, sempre achei muito alguém querer a gente para algo. Depois, me ver narrando o filme do meu time vira uma honra gigante", conclui a, agora, narradora.
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