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Livro reúne dados sobre acesso a armas no Brasil: 'Aumento de feminicídios'

Bruno Langeani, advogado especialista em Políticas Públicas e controle de armas e coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, autor do livro "Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência" - Divulgação
Bruno Langeani, advogado especialista em Políticas Públicas e controle de armas e coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, autor do livro 'Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência' Imagem: Divulgação

Marcela De Genaro

De Universa

25/11/2021 04h00

Comprada com o argumento de proteger a família, usada como instrumento para assassinar mulheres. O crescimento do acesso a armas de fogo no Brasil traz como resultado direto o aumento no número de feminicídios causados por tiro. Essa é uma das conclusões que Bruno Langeani, advogado especialista em Políticas Públicas e controle de armas e coordenador de projetos do Instituto Sou da Paz, traz no livro "Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência", que acaba de ser lançado pela Editora Telha.

Entre dezenas de pesquisas rigorosamente científicas que comprovam que quem possui uma arma tem mais chance de morrer do que pessoas desarmadas, a obra traz um comparativo entre o aumento do armamento e os índices de feminicídio. De 2014 a 2018, o número de registros ativos de armas com cidadãos (defesa pessoal) aumentou 23,42%, segundo o Sistema Nacional de Armas (SINARM). No mesmo período, os homicídios de mulheres por arma de fogo dentro de residência subiu 19,50% (de acordo com o Atlas da Violência 2020).

"Acredito que estes números estejam diretamente relacionados. A violência contra a mulher é normalmente praticada por um conhecido, geralmente companheiro ou ex-companheiro. Nos EUA, nove em cada 10 feminicídios foram cometidos por companheiros. No Brasil, um levantamento feito pela Folha de S. Paulo em 2019 apontou sete em cada 10", argumenta o advogado.

Na obra, o autor traz uma pesquisa publicada em 2019 no "American Journal of Preventive Medicine", que avalia a diferença de índices de violência contra mulher em estados mais armados e menos armados nos EUA. O estudo aponta, primeiramente, que nos estados norte-americanos onde há maior número de pessoas com armas, a taxa de homicídios em ambiente doméstico é 64% maior do que em estados menos armados.

Livro - Divulgação - Divulgação
Capa do livro 'Arma de fogo no Brasil: gatilho da violência'
Imagem: Divulgação

"Isto ocorre tanto para mortes de homens quanto para morte de mulheres, mas no caso destas, o incremento é ainda maior. Cada 1% de aumento na posse de armas significa aumento de 1,4% na vitimização letal da mulher por seu parceiro íntimo", explica Langeani.

No Brasil, pesquisa realizada em outubro pelo Instituto Patrícia Galvão corrobora com a conclusão de que a arma de fogo em ambiente doméstico é prejudicial à mulher. Segundo o estudo, que avaliou a percepção da população em relação ao feminicídio, uma em cada seis brasileiras já foi vítima de tentativa de feminicídio íntimo —ou seja, sofreu tentativa de assassinato por atual ou ex-parceiro. No mesmo estudo, 90% das mulheres e 80% dos homens entrevistados concordam que a arma de fogo em casa desestimula a mulher a denunciar a violência doméstica e aumenta o risco de que ela seja assassinada.

Bruno Langeani explica que há problemas de notificação de feminicídio nos dados de segurança do país, "mas, em geral, entre todos os homicídios de mulheres, 49% se deram com o uso de armas".

O Brasil dobrou o número de armas nas mãos de civis nos últimos três anos, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

O Sistema Nacional de Armas (Sinarm) da Polícia Federal registrava, em 2017, 637.972 armas. No final do ano passado, o número de registros ativos aumentou para 1.279.491.

A afrouxamento das leis para aquisição de armas, a discussão do projeto de lei que propõe armar mulheres ameaçadas por violência doméstica, o uso real do artefato comprado com o argumento de proteção e exemplos de casos como a da policial Sylvia Rafaella Gonçalves Pereira, influencer que defendia o armamento e acabou assassinada a tiro pelo companheiro, assim como possíveis soluções para prevenção do feminicídio por arma de fogo, estão na entrevista com Bruno Langeani a seguir.

UNIVERSA - O porte de armas é incentivado no âmbito da política nacional. O argumento é a necessidade do cidadão de bem estar armado para proteger sua família e propriedade. Quem tem arma está mais protegido?
BRUNO LANGEANI - O que as pesquisas mostram é que o acesso à arma para proteção traz uma sensação ilusória de defesa. O principal argumento do cidadão é ter arma para se proteger dos criminosos, mas, na maioria das vezes, ela é usada para ameaçar e agredir.

Exemplos de que a arma não protege podem ser vistos em casos como o do presidente Bolsonaro e do deputado Alberto Fraga, um histórico defensor do armamento. Ambos já sofreram assaltos estando armados e não conseguiram usar a arma para se defender. No caso do presidente Bolsonaro, levaram a moto. No de Alberto Fraga, ele dormia com a espingarda ao lado do travesseiro quando sua residência foi invadida. Só que os criminosos em geral não tocam a campainha para avisar que estão chegando. Eles entraram com a mulher do deputado rendida e a espingarda não serviu para nada, pelo contrário, não só não evitou o assalto como foi levada pelos criminosos.

Apesar do sentimento de usar a arma para defesa, na prática isso não funciona. O latrocínio sofrido por policiais é um exemplo, algo contraintuitivo.

Os policiais, que não apenas conhecem armas de fogo como são bem treinados para usá-las, morrem mais, precisamente porque reagem com arma. Um estudo do Instituto Sou da Paz mostra que de cada 10 policiais mortos em São Paulo, sete estavam de folga. No Rio de Janeiro, dados do Instituto de Segurança Pública indicam que as chances de um policial ser vítima de latrocínio é 6 mil vezes maior do que a do cidadão comum. São estatísticas bem contundentes que comprovam que escolher estar armado não é sinônimo de proteção.

De que maneira as mulheres são afetadas quando há arma em casa?
São muito afetadas, pois quando se fala em violência doméstica o agressor é uma pessoa próxima. Mesmo quando não é disparada, a arma de fogo é usada para perpetuar um ciclo de violência, é utilizada para ameaçar. A arma também funciona como um obstáculo adicional para a denúncia, ajudando a alongar este ciclo de violência.

Fora a grave situação de ter na mesma casa arma de fogo e criança. Por conta da curiosidade é frequente que as crianças as encontrem, queiram brincar e é quando o acidente acontece. Ter arma em casa também é perigoso para casos como o da adolescente Isabele, de 14 anos, em Cuiabá, morta na casa de uma amiga. A adolescente que efetuou o disparo treinava tiro esportivo com o pai e a arma do crime foi levada pelo namorado dela, cujos pais também tinham arma registrada para tiro esportivo.

Qual é a proporção do uso da arma de fogo em feminicídios?
Há problema de notificação de feminicídios no Brasil em dados da segurança. Nos da saúde, costumamos usar mortes por agressões externas cometidas em ambiente residencial como uma alternativa para a análise do feminicídio. Mas em geral, entre todos os homicídios de mulheres, 49% se deram com o uso de armas (homens são 72%). Em algumas regiões do Brasil, como no Nordeste, o índice chega a 61%.

No caso de grupos específicos, como as mulheres negras, o índice de morte por armas de fogo é maior, 52%.

Essa proporção em comparação com outros países é bastante alta, tanto para mulheres quanto para homens. A média mundial de morte por arma de fogo, tanto de homens quanto de mulheres, é de 42%. No Brasil, este índice é de 72%.

De acordo com o Atlas da Violência 2021, os homicídios de mulheres em casa cresceram 10,6% entre 2009 e 2019, enquanto os assassinatos fora das residências apresentaram redução de 20,6%. Existe conexão entre o afrouxamento da política de controle de armas e o aumento da violência doméstica?
Fazendo um comparativo de 2014 e 2018, o número de registros ativos de armas com cidadãos (defesa pessoal) aumentou 23,42%. No mesmo período, os homicídios de mulheres por arma de fogo dentro de residência subiu 19,50% (segundo o Atlas da Violência 2020). Acredito que esses índices estejam relacionados. A violência contra a mulher é normalmente feita por um conhecido, companheiro ou ex-companheiro. Nos EUA, nove em cada 10 feminicídios foram cometidos por companheiros. No Brasil, levantamento feito pela Folha de S. Paulo em 2019 apontou sete em cada 10.

Além de facilitar a compra, uma parte preocupante da atual política de armas do governo Bolsonaro é que, após o registro, quem possui arma só precisa fazer novamente um teste psicológico 10 anos depois.

No início do Estatuto do Desarmamento eram três anos, Temer passou para cinco e agora foi para 10. Até o próprio Conselho Federal de Psicologia acha impossível dar um laudo por 10 anos. Há uma série de efeitos colaterais para quem compra armas. Compra-se para proteger a família, a casa, mas, na prática, acaba-se usando em situações injustificadas, como por exemplo uma briga num bar.

Tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6278/19, que autoriza o porte de arma de fogo para as mulheres que estejam sob medida protetiva decretada por juiz. A proposta defende que as potenciais vítimas têm direito à autodefesa. Como você analisa o PL?
A primeira coisa que chama atenção é que, mais uma vez, é um projeto feito por homens querendo propor o que as mulheres precisam. Em segundo lugar, é necessário entender o contexto em que as ameaças acontecem, que é majoritariamente de alguém da família ou próximo. A mulher, para se proteger, precisa muito mais de um lugar seguro para ficar, uma casa de acolhimento com infraestrutura para isso. Ainda que a ideia de armar uma mulher fosse protegê-la, muitas vezes, por conta da situação que desestrutura economicamente, ela não tem dinheiro nem para pagar a documentação para aquisição de arma, muito menos comprá-la.

As pesquisas comprovam que quem está armado tem mais chance de morrer e um exemplo de que ter uma arma não soluciona é o caso da policial Sylvia Rafaella Gonçalves Pereira, 38 anos, que fazia apologia ao uso de armas em seu perfil nas redes sociais. Ela foi morta por tiro disparado pelo companheiro, também policial, do qual tinha medida protetiva, na Bahia. Isso serve para mostrar o quão absurda é esse tipo de proposta.

É possível analisar a consequência entre a mistura de isolamento da pandemia e a posse de arma de fogo? Houve mais feminicídio?
Sim. O feminicídio aumentou em todo o país, mas de forma mais grave no Centro Oeste (14%) e no Norte (37%). O fato de a ameaça contra a mulher vir de dentro de casa torna o contexto da pandemia mais desafiador, tornando a violência praticamente numa situação de cárcere privado, sem condições de fazer denúncias ou pedir ajuda.

Juntando com a explosão de compra de armas no mesmo período, temos uma situação muito preocupante de violência contra as mulheres. Com a pandemia um pouco mais controlada temos visto denúncias que estavam represadas, de violência, ameaça e abuso sexual, chegando com mais força nas delegacias.

De que maneira as diretrizes políticas e postura presidencial de incentivo ao armamento afetam a violência doméstica?
Bolsonaro se orgulha de suas posições machistas e de um culto à violência. É bastante simbólico que um dos poucos artistas brasileiros com os quais Bolsonaro se solidarizou após a morte tenha sido o MC Reaça, que se suicidou após ter espancado e destruído o maxilar de sua amante, que ele suspeitava que pudesse estar grávida. Isso diz muito sobre como enxerga as mulheres.

O que uma mulher pode fazer quando começar a se sentir ameaçada pelo companheiro que tem arma de fogo?
É importante que essa mulher procure a rede de apoio da sua cidade, isso infelizmente varia de Estado para Estado, uns são mais estruturados que os outros. Mas que procure a delegacia da mulher, a Defensoria Pública, a Secretaria de Assistência Social ou casas de apoio que deem a assistência para essa mulher fazer a denúncia de forma segura, e lugares de acolhimento onde possam ter apoio para reconstruir a vida

Um ponto de avanço foi a inclusão na Lei Maria da Penha de uma medida (lei 13.880/2019) que exige que o delegado cheque se o possível agressor possui registro ou porte de arma e, em caso positivo, que o juiz determine a apreensão cautelarmente. Isso deve ser feito rapidamente, pois em uma questão de horas pode salvar ou não a vida dessa mulher.

A melhor forma de autodefesa é se afastar do ambiente de risco.

Em novembro entrou em São Paulo a lei que obriga condomínios a denunciarem casos de violência doméstica ou familiar. Quando se sabe da existência de arma de fogo, é necessário ter algum cuidado especial?
Medidas como essa e outras neste sentido, como a dos hospitais serem obrigados a notificar se uma paciente atendida for vítima de agressão doméstica, são positivas porque tiram a decisão de uma esfera individual. Tira a obrigação das costas do CPF para o CNPJ, o que promove um distanciamento seguro e protege o indivíduo ameaçado.

Estamos num momento em que a flexibilização para compra de armas faz com que precisemos ter outros cuidados. Veja no caso da adolescente em Cuiabá que morreu vítima de tiro disparado por uma amiga. No meu tempo, quando ia brincar na casa de um amigo, a preocupação era se tinha um adulto presente. Hoje, os pais precisam se preocupar se há arma na residência dessa pessoa.

De 2017 a 2020 o registro de armas dobrou de 637 mil para 1,2 milhão, tem tantos novos lares com arma que essa tem que ser uma preocupação.

Quais as possíveis soluções para a diminuição do feminicídio cometido por arma de fogo?
A primeira coisa é voltarmos a ter racionalidade nas regras de compra de arma de fogo, como era antes do governo Bolsonaro. É necessário que se faça uma avaliação oficial sobre a necessidade de armar a casa do cidadão. E que estas medidas sejam reavaliadas periodicamente, idealmente a cada três anos.

Numa esfera estadual ou federal, que se criem casas de acolhimento para que essas mulheres possam, no caso de urgência, serem removidas imediatamente para um local protegido. Estes serviços devem também ter projetos de geração de renda, algo que lhe permita se estruturar longe do agressor.

Nos sistemas de segurança e justiça é fundamental que haja aplicação de formulários de avaliação de risco cada vez que uma mulher entra para fazer uma denúncia. Assim, a polícia consegue priorizar casos mais graves e interceder imediatamente para evitar com que a violência se agrave, levando ao feminicídio.