Corte Interamericana condena Brasil por feminicídio ocorrido em 1998
Na última quarta-feira (24) o Estado brasileiro foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos por um caso de feminicídio ocorrido em 1998, em João Pessoa (PB).
A jovem Marcia Barbosa de Souza, de 20 anos, negra e de recursos econômicos escassos, saiu do interior da Paraíba e se mudou para a capital em busca de emprego. Poucos dias depois da sua chegada, foi assassinada pelo então deputado estadual Aércio Pereira por asfixia. Seu corpo foi encontrado em um terreno baldio.
Na época, Aércio não se tornou réu do caso em razão da imunidade parlamentar: a ação penal só poderia ser instaurada com a autorização da Assembleia Legislativa do Estado da Paraíba, que negou a continuidade do processo duas vezes.
Aércio se reelegeu e permaneceu gozando de liberdade. Ele só foi julgado pelo crime cinco anos depois, quando recebeu uma sentença de 16 anos de prisão pelo homicídio e ocultamento de cadáver da jovem — na época, a legislação brasileira ainda não especificava esse tipo de crime como feminicídio.
A investigação apurou que o deputado havia feito uma ligação para o hotel na qual a jovem estava hospedada, oferecendo a ela um emprego em uma fábrica de sapatos. Horas depois, Márcia usou o celular dele para fazer uma ligação, na qual soava aflita e preocupada. Sua família foi avisada de que ela corria perigo, mas por falta de recursos financeiros, nenhum parente pode ir ao seu encontro naquela mesma noite.
Em razão da idade avançada e de um estado de saúde debilitado, Aércio nunca chegou a ser detido. Ele faleceu cinco meses depois da sentença, em liberdade, por problemas cardiovasculares. Desde a noite do crime, a família da jovem busca por justiça.
Condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
O caso foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos por meio do Gabinete Assessoria Jurídica Organizações Populares (GAJOP) e do Centro pela Justiça e Direito Internacional (CEJIL). Após o julgamento, a Corte reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro na violação de artigos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos.
À Universa, Rodrigo Deodato, professor de direito da UNICAP de Pernambuco e representante da família da vítima no tribunal pelo GAJOP, explicou mais sobre a decisão. "O Estado foi condenado a constituir uma base de informações e estatísticas sobre a situação dos feminicídios no país, a fim de que eles sirvam como base para a constituição de políticas publicas", aponta.
Além disso, o Brasil deve pagar uma indenização aos familiares de Márcia e o estado Paraíba deve estabelecer uma política pública de empregabilidade e profissionalização de mulheres. "Essa foi uma demanda apontada pelos parentes de Márcia, justamente por ela ter se mudado para a capital em busca de emprego", aponta Rodrigo.
Por fim, pela primeira vez, a Corte Interamericana também estabeleceu parâmetros a serem considerados em relação à imunidade parlamentar, que, segundo Rodrigo, "não pode servir como manto para a impunidade".
Embora as medidas sejam de caráter obrigatório, uma vez que o Brasil aceitou a jurisdição da Convenção Americana de Direitos Humanos, se comprometendo a cumpri-la, o professor relembra que nem sempre elas são respeitadas. "Por isso é importante ressaltar que o caso ainda não está encerrado. Agora tem início a terceira e última fase: a Corte começa a checar o cumprimento dos pontos resolutivos da sentença. Periodicamente, irá requisitar informações aos representantes das vítimas e ao Estado".
Estratégia da defesa manchou a reputação da vítima
Consultada pela reportagem, a jurista Soraia Mendes, que também participou da análise do processo, chamou a atenção para a estratégia adotada pela defesa de Aércio Pereira, que visava prejudicar a imagem de Márcia.
"Existia uma busca incessante pela construção de uma figura da vítima como uma mulher usuária de drogas, prostituta, interesseira. Existem mais de 150 recortes de jornais fazendo menção ao caso, a maior parte deles contribuindo para a construção dessa imagem, de uma vítima que é, entre muitas aspas, 'merecedora' de morrer", aponta.
Rodrigo, que estava presente no julgamento de Aércio Pereira, chama atenção para o machismo presente na sociedade. "Márcia tinha 20 anos e um comportamento considerado à frente do contexto em que vivia. A defesa evocava sempre valores morais e elementos como o uso de bebidas, fumo e comportamento dito inadequado. Mas Márcia era uma jovem como qualquer outra. Apenas buscava viver ser feliz e dar uma nova oportunidade de vida para sua família. Isso foi usado pela defesa, que dava a entender que, se ela estivesse em sua casa, no interior — e não saído com um homem à noite — não teria sido estuprada e morta", finaliza.
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