'O meu sonho é escrever um rap', diz Conceição Evaristo
Alô, Emicida, Conceição Evaristo está preparando uma canção. "O meu sonho é escrever um rap. Já até comecei", disse em entrevista a Universa por vídeo chamada desde sua casa em Igarapé (MG). Quando a letra estiver pronta, a escritora, que hoje completa 75 anos, planeja entregar a um dos "meninos do rap" para dizerem, pela música, o que ela quer dizer. "O Emicida já não é mais tão menino assim, mas tem toda uma juventude atrás dele", brinca, ao contar que o artista a inspira muito.
E do que falaria a canção? "É algo mais ou menos como o 'rapper da experiência', qualquer coisa assim. Eu não sei de cor, mas a ideia central é essa: de que vale esse acúmulo, toda essa experiência que eu tenho se ela não for apropriada por essa juventude? Aí eu vou falando: 'eu sei todos os perigos, eu sei que o buraco é mais embaixo, eu sei que a sociedade quer nos ver mais lá no fundo...'" A experiência sobre a qual ela se refere é a luta contra o racismo.
A minha geração denunciou e apresentou propostas. As ações afirmativas são propostas da minha geração. Mas essa juventude que hoje usufrui dessas ações afirmativas não vai mais abrir mão delas.
Na semana passada, Conceição foi homenageada durante o evento que revelou as vencedoras do Prêmio Inspiradoras 2021, parceria entre Universa e o Instituto Avon. A iniciativa tem o objetivo de reconhecer e dar maior visibilidade a mulheres que atuam em três diferentes causas: câncer de mama, violência contra mulher e equidade de gênero.
A escritora fez uma participação logo no início do evento de premiação, realizado em formato híbrido - parte online, parte presencial, na Casa Natura Musical, em São Paulo. Ainda em luto pela morte da mãe, Joana Josefina Evaristo, aos 98 anos, em outubro, Conceição recitou seu poema "Vozes-Mulheres", sobre a ancestralidade das mulheres negras, que carregam a dor das antepassadas escravizadas.
"Nós vamos impor nosso corpo, vamos impor nossa arte"
Passadas três décadas desde que a Lei Áurea foi assinada, a população negra ainda está entre as piores estatísticas: a que morre mais jovem, a que mais morre em ações policiais, a que mais morre por covid, a que mais morre.
Ao mesmo tempo, iniciativas tentam, ainda que timidamente, reparar tanta tragédia. Empresas promovem programas de diversidade, a imprensa parece estar acordando para a urgência de ouvir intelectuais e especialistas pretos, algumas campanhas de publicidade começam a pensar em representatividade.
Será que já podemos considerar que houve algum ganho ou, assim, corremos o risco de maquiar o cenário e atrasar as soluções reais?
Eu acho que existe ainda o risco de toda essa consciência ser uma consciência muito epidérmica: parece à flor da pele, ou é à flor da pele, mas sem muitas consequências profundas. Partidos políticos, por exemplo, falam de cotas, mas você procura os cargos políticos e ainda há uma ausência de mulheres e ainda há uma ausência de negros.
Ainda assim, Conceição acredita que é um movimento sem volta, impulsionado não só por jovens negros, mas brancos que, conscientes, não vão mais aceitar que o racismo continue sendo a base da estrutura social brasileira.
Eu vou sempre falar das cotas em universidades. Há uma juventude negra que está aí se formando, ao mesmo tempo que tem uma juventude negra que está aí - como é que se diz? - tombada nas valas. Mas é uma juventude que também está aí bastante questionadora, está aí buscando seus direitos. Tem uma juventude negra que não vai deixar por menos.
E a luta, diz Conceição, é também por meio da linguagem, da palavra, da arte.
Quando um menino desse [como o Emicida], da quebrada, diz, 'é nóis por nóis', ele sabe que é 'por nós', mas essa atitude de ferir a língua portuguesa já é muito emblemática, é muito sintomática. Eles querem impor a linguagem deles e impor a linguagem é um modo de afirmação. Nós vamos impor a linguagem, vamos impor o nosso corpo, vamos impor a nossa arte.
Merecedora de todas as honrarias
Doutora em Literatura Comparada e uma das principais intelectuais de nosso tempo, Conceição teve de lutar muito também pelo reconhecimento de seu trabalho, algo que só recentemente tem ganhado o estofo que merece.
Escreve desde menina, mas o primeiro romance, "Becos da memória", ficou pronto em 1988, aos 42 anos. A obra, porém, só foi publicada quase duas décadas mais tarde, em 2006, três anos depois de "Ponciá Vicencio".
Mesmo sendo bem aceito por parte da crítica, o trabalho de Conceição ainda encontrou resistências. Em 2018, candidata a uma vaga na Academia Brasileira de Letras, perdeu o posto para o cineasta Cacá Diegues, o que causou polêmica.
O grande público, que não acompanha a cena literária brasileira, demorou, é claro, ainda mais para descobri-la.
Eu, a repórter acima assinada, testemunhei os bastidores disso. Em 2017, quando a entrevistei pela primeira vez, precisei apresentar muitas credenciais de Conceição antes de emplacar a reportagem. Agora, quatro anos depois, tive a honra de repetir a dose, durante a produção do Prêmio Inspiradoras 2021.
Em uma das várias reuniões da comissão organizadora da premiação, enquanto discutíamos quem seriam as finalistas da categoria Esporte e Cultura, o nome de Conceição rapidamente apareceu. E todas as mulheres presentes, que têm formações diversas, sabiam muito bem quem ela é e a importância que tem não apenas para as artes, mas como intelectual do nosso tempo. Dessa vez, portanto, meus argumentos foram em outro sentido: a escritora não poderia concorrer ao prêmio. É, afinal, hors-concours, merecedora de todas as honrarias que uma premiação do tipo pode ter. Daí a ideia de abrir a premiação fazendo uma reverência a essa mulher tão inspiradora.
Mulheres que inspiram Conceição Evaristo
Efigênia Carlos Pimenta, professora
O que mais me chamava atenção em Efigênia é que, às vezes, a gente a encontrava no final da tarde e ela estava morta, né? Cuidando dos filhos, cuidando da casa, saindo para dar aula... E, aí, a gente dizia: vamos sair um pouco? Menina, em um minuto, Efigênia entrava no quarto e quando saia era uma nova mulher. Era impressionante como ela conseguia se recuperar. Voltava assim muito, muito? voltava rejuvenescida.
[...] É uma mulher bem negra, mais negra do que eu com o cabelo branco. Então faz um contraste muito bonito, né? E ela criou os filhos com toda dificuldade, como professora e uma pessoa também sempre comprometida com a questão social, com a questão racial. Então o modo como ela encarava o dia a dia, o cotidiano, também foi muito importante para mim. E, aí, quando minha filha Iná nasceu, ela só foi para casa com três meses. E eu ficava numa condição que eu tinha que cuidar daquela menininha, e eu não podia nem me cuidar, porque o tempo todo a Iná chorava, ela não podia chorar, porque ficava com falta de ar e coisa e tal. E um dia a Efigênia chegou na minha casa. Quando ela me viu tão extenuada, quer dizer: aquele negócio mesmo de ser solidária, né? E ela fala: "quanto tempo você não penteia o cabelo?" E eu tinha mais cabelo nessa época, né? E Efigênia penteia o meu cabelo. Foi um gesto, assim, de afeto, de acolhida, de cumplicidade tão grande, porque eu estava tão atordoada? tão atordoada. Então Efigênia que é uma pessoa que sempre me inspirou muito.
Nossa geração é de um tempo em que as pessoas negras não eram consideradas bonitas. E como essas mulheres depois de uma certa idade - vou usar um termo até... - 'se empoderaram' a partir do próprio corpo, do cuidado com elas mesmas. Tinha uma vaidade, mas muitas vezes elas não tinham nem condição de comprar nenhum produto de beleza. Por exemplo: a Efigênia, eu lembro de chegar na casa dela e ela fazendo limpeza de pele como? Ela tinha comido uma banana e, aí, a casca da banana ela pôs um pouquinho de leite, um pouquinho de aveia, flocos de aveia e pegava ali a casca da banana e passava no rosto. Ela sempre fez isso. E se você visse a pele de Efigênia, uma mulher de 80 e tantos anos?
Nina Simone, cantora
Eu adoraria ter sido Nina Simone, entende? Como eu gosto de Nina Simone e não sei cantar um 'A', entende? Mas, se eu fosse Nina Simone?, acho que eu seria bem feliz, né?
Winnie Madikizela-Mandela, política é ativista por causas étnico-raciais
Eu tive um impacto muito grande quando eu a vi a primeira vez, quando o Mandela saiu da prisão, a primeira vez que ele veio ao Brasil [em 1991]. Eu trabalhava na secretaria de cultura, no Centro Cultural José Bonifácio, nós trabalhávamos com Cultura Negra, então eu estava na equipe que foi ao aeroporto recepcionar o Nelson Mandela. Eu me lembro que o Mandela saiu primeiro porque ele era 'o' Nelson Mandela e Winnie Mandela saiu atrás dele. Pode ter sido impressão minha, mas, a partir daquele momento, eu não consegui mais olhar para ele, entende? Era Winnie Mandela que chamava atenção. Primeiro pelo porte dela, a elegância, a altivez dela com aquela roupa, a forma como ela mostrava com o próprio corpo. Nelson Mandela estava de terno, Winnie Mandela estava com os trajes africanos, né? Com a roupa africana, inclusive com o torso e tudo. Depois eu consegui, nós conseguimos ir a uma palestra dela, a um encontro com ela. Eu sou muito tímida, não tirei nenhuma foto nem com ela, nem com o Nelson. Porque estava todo mundo tirando foto. Eu tenho arrependimento, acabei não tirando. A única coisa que eu consegui, eu estava com o livro que conta a vida dela, eu consegui uma assinatura no livro dela, um autógrafo, mas também fui tão sem sorte, que eu emprestei esse livro e nunca mais esse livro me voltou. Nunca mais!
Toni Morrison, escritora premiada com o Nobel de Literatura em 1993
Outra pessoa, outra mulher que me inspira muito, mas fiquei muito frustrada, porque nós estávamos cavando oportunidade de se encontrar, mas a vida não deu tempo, é Toni Morrison [ela faleceu em agosto de 2019]. Eu já tinha mandado Ponciá Vicencio para ela em inglês, não sei nem se chegou até ela? A primeira vez que eu vi a Toni Morrison de perto, foi na Flip [2006], quando ela veio ao Brasil e me parece que ela foi a escritora homenageada. E foi muito frustrante porque foi logo depois do episódio das Torres Gêmeas, então a segurança americana era exagerada, você não conseguia chegar perto de Toni Morrison. E então nós estávamos lá na Flip, consegui também um livro para ela fazer autógrafo. Uma das meninas nossa, a professora Fernanda Felisberta ela fala inglês, ela conseguiu trocar algumas palavras com a Morrison. Aliás: era a segunda vez que ela vinha ao Brasil. Ela já tinha vindo ao Brasil e ficou muito impressionada porque chegou aqui, foi a algumas livrarias procurar livros de mulheres negras, produção de mulheres negras e não achou nada. Hoje ela acharia.
Beatriz Nascimento, historiadora vítima de feminicídio
Beatriz Nascimento era uma mulher negra. Foi a primeira mulher historiadora a estudar quilombos. Até então, as narrativas de quilombos eram de homens, de historiadores. E Beatriz faz uma pesquisa e traz inclusive um conceito muito interessante sobre quilombo, não só quilombo do ponto de vista histórico, mas quilombo como o paradigma de organização não só de negros, mas como paradigma de organização do povo brasileiro.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.