1ª presidente mulher da OAB-SP: 'Devemos sentar à mesa e discutir aborto'
Presidente recém-eleita da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo), Patricia Vanzolini, 49 anos, será a primeira mulher a ocupar o cargo a partir do ano que vem, quando inicia seu mandato. Vê a importância no feito, mas, diz, foi eleita por vários outros méritos. E tem razão. Advogada criminalista, mestre e doutora em Direito Penal e professora há quase 20 anos, levanta a bandeira da inclusão, da diversidade e dos direitos humanos, um lampejo de renovação para a maior entidade de advogados do país, que era comandada por um mesmo grupo há 30 anos.
Em entrevista a Universa, recorda seus primeiros passos na advocacia, que começou em um escritório que era "só uma portinha na Avenida Paulista", em São Paulo; comenta as dificuldades que ela e outras mulheres enfrentam na área e que, mesmo assim, não as impede de alcançar grandes vitórias. No caso dela, a própria eleição.
Também fala sobre violência de gênero e leis de proteção às mulheres. Como especialista em Direito Penal, opina ainda sobre a lei que as pune: a do aborto, com prisão prevista de um a três anos. "Esse tabu que se criou, a favor ou contra, é contraproducente. A lei que proíbe o aborto tem se mostrado pouco eficaz, a gente sabe que os abortos clandestinos são feitos. Deveríamos sentar à mesa e discutir o assunto."
Mãe de duas filhas, uma de 15 e outra de 2 anos, diz que o tempo livre é dedicado à família. Entre os programas preferidos estão filmes e séries de crime, terror e suspense ao lado da adolescente. "Agora, estamos maratonando 'You'", diz, referindo-se ao seriado da Netflix.
UNIVERSA - A senhora é a primeira mulher eleita presidente da OAB-SP, a maior seccional do país. Mas não enfatizou essa bandeira na campanha. Por quê?
Patricia Vanzolini - Existe um aspecto simbólico muito importante no fato de a OAB-SP ser dirigida por uma mulher, não desprezo isso. Mas, por outro lado, é uma instituição gigante, com orçamento de R$ 344 milhões, mais do que a metade das prefeituras do estado. São mais de 400 mil advogados inscritos, então é como se fosse uma prefeitura de médio porte. Antes de mais nada, deve ser comandada por alguém qualificado, com projetos concretos para gerir. E a maioria da advocacia paulista entendeu que eu tinha melhores atributos ao me eleger. Não quero que fique só na questão de ser mulher, é uma entre várias. O que acho errado é uma mulher, por ser mulher, perder votos. E a gente sabe que isso existe.
Quais os feitos dos quais mais se orgulha em sua trajetória?
Tenho orgulho de seguir uma carreira acadêmica, uma coisa que sempre gostei, de fazer mestrado e doutorado, o que não é fácil, e conciliar tudo: tenho duas filhas, uma de 15 e outra de 2 anos. Também me orgulho de ter me estabelecido como advogada reconhecida. Comecei sem nenhum padrinho, meu escritório era uma portinha na Avenida Paulista. Cresci em uma área muito machista, que é o Direito Penal. Ainda incluo ter ajudado a formar tantos alunos. Grande parte dos advogados formados em São Paulo foram meus alunos, muitos são promotores, juízes, e é muito bacana ver o carinho e deixar a marca de um pensamento mais humano, de um direito preocupado com as pessoas. Agora, com o cargo de presidente da OAB-SP, não pretendo abrir mão de nada, mas vou diminuir a carga.
A entidade adotou uma política de cotas raciais nas eleições, que a senhora apoiou. Por que isso é importante?
Se a advocacia é diversa, a OAB tem que ser também. A gente olha pra parede dos presidentes e só vê homem branco, heterossexual. É uma entidade descolada da realidade. Tem que ter a cara de todos. Neste ano, foram aprovadas as cotas de 30% para negros, e nossa chapa optou por ter representantes em todos as instâncias. Também por representatividade LGBTQIA+, temos a conselheira, Marcia Rocha, que é trans, uma advogada combativa, militante. Para a gente era muito importante tê-la. Acreditamos que diversidade é riqueza.
Quais são os efeitos do machismo enfrentados pelas mulheres no Direito?
Certamente o efeito visível é o seguinte: as mulheres hoje são metade da advocacia, mas nas empresas são minoria nos cargos de comando, entre os CEO, nas diretorias jurídicas e nas sociedades de advogados. Estão no pé da pirâmide. Vai subindo e vai rareando o número de mulheres.
O porquê de isso acontecer é complexo. Percebo muitos casos de assédio sexual e moral no ambiente de trabalho, pergunto para as minhas alunas, que já são estagiárias, se alguma já sofreu e pelo menos 10% levantam a mão. Elas escutam coisas como o chefe dizer que está linda, chamando para sair, ouvem cantada na delegacia. Também tem o fator de descredibilização, a gente vê quando o homem fica interrompendo. Então há mesmo a dificuldade mais agressiva, que é o assédio, até a mais sutil, de interromper, explicar como se a mulher fosse meio café com leite.
Que situação de machismo já enfrentou e considera emblemática?
Nunca passei nada explícito, mas já vivi situações que sentia que, se fosse homem, me respeitariam mais. O delegado não iria "crescer", falar alto, gritar comigo. Por ser mulher, se sentem mais à vontade para agir assim. Também já passei por cenas como estar em uma reunião e um homem explicar exatamente o que você acabou de dizer.
Na campanha para a presidência da OAB-SP também senti o machismo. Eu enfrentei uma eleição muito dura. Em 30 dias, tive que percorrer 254 cidades, abri mão da vida pessoal por um período. Respondi muito onde estavam minhas filhas e quem estava com elas. Quando dizia que era meu marido, sempre o elogiavam. O vice-presidente na minha chapa, Leonardo Sica, também tem duas filhas, e nunca ninguém perguntou a ele onde elas estavam. Para mim, era sempre um mix de culpa e de justificativas de que elas estavam bem cuidadas.
Ainda que o Brasil tenha a Lei Maria da Penha, que protege mulheres de violência doméstica, ainda há mais foco na punição do agressor do que na prevenção da violência. Qual sua opinião sobre isso? É esse, de fato, o caminho?
A punição do agressor tem um efeito, mas é limitado. Esse agressor, ainda que seja punido, se não entender, se não houver mudança na mentalidade dele, vai se achar injustamente punido, vai criar mais animosidade e raiva das mulheres. E eu vejo isso no meu escritório: homens que são acusados de agressão acham que são injustiçados, criam um ódio intenso até da Maria da Penha, que dá nome à lei. Se não houver um processo de educação e compreensão, o ciclo da violência tende a continuar, não vejo a possibilidade diminuir. Seguindo só essa linha, a gente acaba só apagando incêndios. A prevenção, aliás, deveria vir desde a escola, com uma desconstrução do pensamento patriarcal.
Um dos debates mais fervorosos sobre mulheres envolvendo o Direito Penal é sobre a criminalização do aborto. É a favor ou contra?
Sou a favor de uma discussão mais ampla na sociedade. A mera mudança na lei à força, sem mudar a concepção da sociedade, não sei se é a solução. Mas precisamos parar de ter medo de discutir sobre aborto. Deveríamos sentar à mesa e falar sobre isso.
É um tabu muito grande, há um conflito entre direitos fundamentais: o direito reprodutivo, da mulher, e o do nascituro. No segundo caso, para proteger a vida intrauterina argumentam que se deve proibir o aborto e castigar a mulher. Mas a lei que proíbe o aborto tem se mostrado pouco eficaz. A gente sabe que os abortos clandestinos são feitos. Se a sociedade se importa com a vida intrauterina, a discussão deveria ser qual a melhor forma de defender essa vida, prestando assistência pré-natal, até mesmo com educação sexual, para evitar uma gravidez indesejada. É hipocrisia que só se pense no castigo da mulher. Além disso, só há castigo para mulher. E o pai que não é presente? Ela acaba arcando com tudo, e não há proteção da vida assim. Se ela não tiver como criar a criança, como dará uma vida adequada, educação?
A senhora já disse que um dos papéis da OAB é a "pacificação da sociedade". Como pretende contribuir para isso?
Quando eu falo em pacificação, quero dizer que a OAB pode contribuir colocando luz sobre nossas afinidades enquanto cidadãos, que são maiores que nossas diferenças. A polarização nos coloca em uma superfície. Se aprofundarmos as discussões a gente vai ver que quer a mesma coisa, que o Brasil cresça, saia da recessão. E pode ter várias vias para chegar nisso, por isso é importante discutir os caminhos.
Vivemos um tempo muito improdutivo, de beligerâncias, oposições superficiais, que acabam impedindo que as pessoas se escutem. As pautas não são esquerda e direita. Direitos humanos, respeito e inclusão são pautas civilizatórias.
A entidade, se mantendo apartidária, pode voltar a encontrar nossos denominadores comuns, se as pessoas pararem de gritar e se ofender. A nossa posição não pode ser contra um governo, tem que ser contra determinado ato ou postura. Nosso lado é o da civilização.
Uma de suas filhas tem 15 anos. Que diferença vê entre o mundo dela e o da senhora quando tinha essa idade?
O mundo avançou muito na aceitação de questões de gênero, de orientação sexual. A gente avançou em termos de normalização e aceitação sobre costumes nessa área. Mas é curioso: quando pergunto pras minhas alunas, com 20 anos, elas são unânimes ao dizer que ainda sentem o machismo de maneira muito forte. A conduta sexual das mulheres é julgada muito mais do que a dos homens ainda hoje, elas são chamadas de termos chulos, uma coisa que eu honestamente achei que teria se dissipado. Avançamos, mas não tanto.
Completando a família, sua outra filha tem dois anos e meio. Foi adotada. Qual diria que foi o maior mito sobre adoção que se desfez em sua vida nesse processo?
O mito de que o vínculo biológico está ligado ao afetivo. Eu tenho uma filha biológica e adotiva, tenho um termo de comparação. Me questionava, antes de adotar, se teria um amor tão grande pela filha que não é biológica, questionava se me identificaria com ela. E vi que nada disso tem a ver com vínculo, que é criado por outras razões. O fato de não ter meus olhos ou meu nariz ou não ter vindo da minha barriga não modifica em nada. Eu acreditava que seria assim, mas ainda ficava na dúvida. Após adotá-la, vi que o verdadeiro vínculo é o do amor materno, independentemente da questão biológica.
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