Abrigo, apoio jurídico e mental: como se reerguer após violência doméstica
Além de terem em comum a profissão, as assistentes sociais Elaine, 42 anos, e Rose Almeida, 44, compartilham um histórico de dor e fazem parte de uma estatística avassaladora: uma em cada seis mulheres já sofreram tentativa de feminicídio no país, segundo dados da pesquisa "Percepções da população brasileira sobre feminicídio", realizada pelos institutos Patrícia Galvão e Locomotiva com apoio do Fundo Canadá, divulgados neste ano.
Elas sobreviveram —e renasceram graças à ajuda de espaços criados justamente para acolher vítimas de violência de gênero. Esses locais são um direito desde 2006, quando foi sancionada a Lei Maria da Penha. Ela garante casas-abrigo para mulheres e seus dependentes menores de idade em situação de violência doméstica e familiar, além de centros de atendimento integral e multidisciplinar, conforme seu texto.
Nove anos após a promulgação da lei, a então presidente Dilma Rousseff (PT) lançou o programa Casa da Mulher Brasileira, que conta atualmente com oito unidades abertas no país, em vez das 27 que constavam na proposta inicial. Em 2020, o programa sequer recebeu investimento.
Em 2018, somente 2,4% dos municípios brasileiros contavam com casas-abrigo. Entre os estados, havia, até então, 43 espaços como esses, todos com localização sigilosa, segundo dados do IBGE, com números do Perfil dos Municípios Brasileiros (Munic) e Perfil dos Estados Brasileiros (Estadic).
Os poucos espaços como esses abertos, mantidos ou não com verba pública, porém, salvaram a vida dessas e tantas outras mulheres. A Universa, elas contam a importância de um local de acolhimento.
Agredida enquanto dormia
A assistente social Elaine conheceu o agressor numa festa e em poucos dias os dois estavam morando juntos. Logo no início, ele demonstrou ciúme excessivo e não demorou muito para as ameaças de morte chegarem.
Na época, em 2018, a moradora da zona norte do Rio de Janeiro atuava como supervisora numa fábrica que distribuía produtos alimentícios, e a demanda era tão grande que ela não conseguia atender aos telefonemas e mensagens que o homem mandava. E ele insistia: "Já aconteceu de ele ligar no meu trabalho e pedir para o meu chefe me mandar atender. Ainda mexia no meu telefone, mandava mensagem por mim e, por último, quebrou o aparelho."
Três meses após constantes brigas, Elaine colocou um fim no relacionamento, mas o marido não aceitou. Aliás, 50% dos feminicídios são cometidos por homens que não aceitam separação.
Dias após o término o homem invadiu a casa onde Elaine mora com a filha e a mãe e a agrediu enquanto todas dormiam:
Acordei com ele em cima de mim, e minha filha o viu escondendo uma faca. Ele ia me matar.
Com os gritos, o agressor foi embora, e Elaine fez um boletim de ocorrência na delegacia, mas ela diz que nada aconteceu. Trocou a fechadura da casa, mas o agressor invadiu novamente o imóvel, furou a caixa d'água, cortou a parte elétrica e jogou uma bomba caseira em cima de seu carro. Ela voltou mais três vezes à delegacia. "O delegado falava: 'De novo?'", e deixava para me atender por último."
'Desespero era tanto que pensei em matá-lo'
Cansada e com medo, Elaine reatou o relacionamento, achando que assim poderia ser mais seguro para sua família. Mas não foi. E quando terminou, após um ano, as ameaças aumentaram: "Ele mandava foto da minha filha na rua e imagens da minha mãe andando, dizendo que mataria as duas. Comecei a sofrer terror psicológico."
O desespero era tanto que pensei em matá-lo. Ficaria presa, mas deixaria minha filha e minha mãe vivas.
Foi a filha, de 23 anos, que a fez buscar ajuda mais uma vez. Ela assistiu a uma palestra sobre os serviços do CEAM (Centro Especializado de Atendimento à Mulher) Chiquinha Gonzaga, da prefeitura do Rio, e convenceu a mãe a ir ao local, na região central. Ali há apoio jurídico e psicológico a mulheres em situação de violência.
Queria tanto uma ajuda que fui esperançosa de que seria diferente. E foi. Me perguntaram se eu queria ir para um abrigo, mas eu não podia deixar minha casa porque minha mãe é idosa e minha filha está se formando.
"Hoje, tenho acompanhamento psicológico, assistente social e advogada. Também concluí um curso de administração bancado por eles. O deslocamento até o curso também foi pago", lista Elaine, que conversou com Universa no local.
Por enquanto ela vive uma paz momentânea, já que o homem está preso. Não pelas agressões, mas porque foi pego num roubo de cargas. E está perto de sair da cadeia.
"Estou esperando a minha filha começar a trabalhar para a gente conseguir sair de onde mora."
Três tentativas de feminicídio em 16 anos
Moradora de Belo Horizonte (BH), Rose Almeida também viveu o horror de ter um facão apontado em sua direção e na de seu filho: "Ele ia matar nosso filho. Nesse dia fui para um abrigo e nunca mais voltei", relembra a assistente social.
Rose casou-se com o agressor aos 22 anos, e conta que desde então sofria violência psicológica dos sogros, que não gostavam do relacionamento. Ela fala que após o nascimento do primeiro filho, hoje com 18 anos, os pais de seu ex-marido, que eram seus vizinhos, pegaram a criança para cuidar sob a desculpa de que a ajudariam durante o puerpério, mas passaram a evitar que a mãe chegasse perto.
Só amamentei meu filho por 15 dias.
Também após o nascimento da criança, o ex passou a agredi-la, patrimonial, psicológica e sexualmente. Durante um dos episódios, já em 2013, chamou a polícia e o homem ficou preso por 15 dias: ele havia tentado atear fogo na casa. Mas foi solto após Rose retirar a queixa. Ela afirma ter sofrido ameaças:
O advogado da família me coagiu a ir ao Juizado para retirar a queixa, senão ficaria sem seu filho. E encontrei o juiz da Vara da Infância aos prantos.
Sem ter para onde ir, com a família em dificuldade financeira e morando no interior do estado, Rose suportou as agressões por 16 anos, até ter o corpo perfurado com uma chave de fenda durante uma briga, em 2017. Apesar disso, o ex só ficou preso por uma noite. "Nesse dia procurei um lugar para onde pudesse levar meus filhos, e achei uma casa-abrigo. Não tinha vaga na hora, mas me ofereceram acolhimento aos fins de semana, quando as agressões pioravam. Voltei para casa esperançosa."
Mas ela não pode esperar até o fim de semana: dois dias depois, numa quinta-feira, o homem chegou em casa bêbado e sob efeito de drogas. Ao ver seu filho dormindo na sua cama com a mãe, tinha certeza de que se tratava de um amante. E puxou o facão para tentar matá-lo.
"Eu vi a tempo e o enfrentei. Peguei meus filhos e fomos para a casa-abrigo, onde recebi todo atendimento necessário, jurídico, psicológico e social. Ficamos por 10 meses até arrumarmos uma casa".
'Fui salva por mulheres'
O espaço onde ela ficou, chamado Casa de Referência da Mulher Tina Martins, é mantido por um coletivo de mulheres, com doações. Entre os serviços que elas oferecem, há encaminhamento das abrigadas para um outro movimento de mulheres que atuam por moradia nos bairros e favelas da região, e que hoje Rose coordena.
"Moro num lugar onde tem 80 famílias. É uma ocupação, mas não tenho condições de pagar um aluguel de R$ 1,5 mil, que é o mínimo de acordo com nossas necessidades."
Hoje digo que fui salva por mulheres que me acolheram, me escoltaram para a faculdade e para o trabalho, para que eu conseguisse me formar, e agora ajudo outras vítimas a sair desse ciclo de violência, mostrando que tem saída e que não precisamos ficar presas a homem.
Onde buscar ajuda
Na cidade do Rio de Janeiro, o atendimento no CEAM, presencial ou remoto, é de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h. Ali tem equipe de advogada, assistente social e psicóloga. A vítima ainda consegue auxílio para chegar até o Centro. Dependendo da necessidade, ela é encaminhada para postos de trabalho, e recebe treinamento. Se corre risco de vida, é levada para o acolhimento sigiloso na Casa Viva Mulher Coralina (Casa Abrigo). Até outubro deste ano já foram atendidas 2.799 mulheres no local.
Na Casa Tina Martins, a vítima pode entrar em contato por telefone e redes sociais. As responsáveis retornam para entender as necessidades e fazer os encaminhamentos corretos. O atendimento é 24h.
Como denunciar a violência doméstica
Em flagrantes de violência doméstica, ou seja, quando alguém está presenciando esse tipo de agressão, a Polícia Militar deve ser acionada pelo telefone 190.
O Ligue 180 é o canal criado para mulheres que estão passando por situações de violência. A Central de Atendimento à Mulher funciona em todo o país e também no exterior, 24 horas por dia. A ligação é gratuita. O Ligue 180 recebe denúncias, dá orientação de especialistas e encaminhamento para serviços de proteção e auxílio psicológico. Também é possível acionar esse serviço pelo WhatsApp. Neste caso, o número é (61) 99656-5008.
Os crimes de violência doméstica podem ser registrados em qualquer delegacia, caso não haja uma Delegacia da Mulher próxima à vítima. Em casos de risco à vida da mulher ou de seus familiares, uma medida protetiva pode ser solicitada pelo delegado de polícia, no momento do registro de ocorrência, ou diretamente à Justiça pela vítima ou sua advogada.
A vítima também pode buscar apoio nos núcleos de Atendimento à Mulher nas Defensorias Públicas, Centros de Referência em Assistência Social, Centros de Referência de Assistência em Saúde ou nas Casas da Mulher Brasileira. A unidade mais próxima da vítima pode ser localizada no site do governo de cada estado.
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