'Em luta contra o alcoolismo, fundei coletivo só para mulheres dependentes'
"Desde pequena a bebida sempre esteve muito presente na minha casa. Cresci numa família de alcoolistas: mãe, tios, primos, que, inclusive, estimulavam as crianças a beber, mesmo sendo menores de idade. Eu, por exemplo, provei minha primeira caipivodca aos 14 anos. Meu primeiro copo cheio foi aos 16.
Com o tempo, fui bebendo cada vez mais. Toda vez que eu bebia, eu bebia muito —e não para apreciar o gosto da bebida, mas para ficar doidona, para me desinibir. Eu era muito tímida, tinha vergonha do corpo, de me relacionar com os meninos, então a bebida sempre me serviu como uma forma de me soltar. E sempre andando com pessoas que bebiam tanto ou mais do que eu.
Segui aumentando a bebida em quantidade e frequência, até que meu segundo casamento foi com um dependente químico —isso é muito comum, um dependente se relacionar com outra pessoa parecida nesse sentido do consumo. Como ele estava em recuperação, parei de beber por um tempo, como forma de ajudá-lo.
Para mim, essa coisa de dar um tempo na bebida não era uma característica de alcoolismo. Naquela época, eu achava que alcoolista é só quem bebe cachaça de manhã e fica na rua mendigando.
Mas, quando esse casamento acabou, aos 29 anos, eu perdi totalmente o controle. Pensava: 'Agora vou viver minha vida, fazer tudo o que eu quiser'. E isso significava beber muito.
'Deixava minhas filhas pequenas sozinhas para beber'
Fui perdendo o controle da minha vida, me relacionando sexualmente com pessoas que eu nem conhecia e sem usar preservativos, tendo apagões de memória, abandonando minhas filhas —uma do primeiro casamento, que foi muito curto, e outra do segundo, que também não durou muito; nessa época elas tinham seis e três anos.
Meu pai trabalhava muito, passava muito tempo fora de casa, e minha mãe era muito ausente na maternidade. Eu lembro de ela falar que queria ser livre. Ela foi fazer faculdade, saía muito com os colegas, bebia muito, dormia até tarde, e enquanto isso eu me sentia muito sozinha. Anos depois, repeti isso com as minhas filhas.
Depois da minha segunda separação, elas moravam comigo, num apartamento, e eu cansei de sair e deixar as duas sozinhas em casa, bem pequenas ainda. É um absurdo, mas eu fiz.
Um dia eu queria muito beber, ir para a rua, e falei para elas que iria à padaria. Elas pediram: 'Não, mamãe, não vai, você não vai voltar'. Lembro de estar esperando o elevador enquanto as duas batiam na porta, do lado de dentro, me chamando. Mas eu fui. E só voltei de madrugada totalmente alcoolizada. Toda vez que isso acontecia eu jurava que ia parar de beber, mas meu organismo já estava muito dependente.
Foram oito anos assim. Não me lembro de muita coisa, mas vivia em função da bebida, de sair, de fazer noitada, e acabei repetindo com as minhas filhas o abandono afetivo que sofri da minha mãe. Nesse período, eu fui irresponsável comigo e com elas.
'A dependência emocional era grande. Não conseguia ficar sozinha'
Decidi procurar minha mãe e pedir para morar com ela, mas fiz isso para poder continuar bebendo mais e mais e enquanto minhas filhas estariam protegidas, em casa com a avó.
E de fato, a coisa piorou muito: se antes eu chegava em casa tarde, agora eu nem voltava. Acordava no dia seguinte sem saber onde eu estava, com quem eu estava, e com medo de ter pegado alguma IST. Depois, chegava em casa sempre muito envergonhada e misturava bebida com calmante e antidepressivo para conseguir dormir.
Ao mesmo tempo, eu tinha uma dependência emocional muito grande, não conseguia ficar sozinha, precisava o tempo todo estar com alguém, como se a minha felicidade dependesse de um relacionamento. Mas esses relacionamentos eram sempre muito abusivos.
Um dia fui a uma roda de samba com um namorado, a gente bebeu demais e na volta nós brigamos. Ele começou a me bater dentro do carro, enquanto dirigia. Eu estava muito bêbada, ele estava mais acordado porque tinha cheirado [cocaína] e eu tentei me jogar para fora do carro, mas ele não deixava, me puxava de volta e batia ainda mais no meu rosto. Até que, quando parou num cruzamento, consegui abrir a porta e fugir, mas desmaiei no caminho.
Meu irmão me encontrou horas depois e me levou para casa. Cheguei com o rosto sangrando, minhas filhas viram tudo e choraram muito. Naquele momento, prometi que não ia mais beber. Minha mãe me chamou e falou: 'Olha, minha filha, eu te amo muito, mas se você não procurar ajuda eu vou te colocar para fora de casa'.
Foi o que me salvou.
Nessa época ela já tinha consciência da doença, tinha parado de beber alguns anos antes por causa de um câncer. Disse: 'Seu rosto está machucado hoje, mas daqui a uma semana você melhora e sai para beber de novo, porque você é alcoólatra como eu'.
'A primeira reunião do AA foi muito difícil, só tinha homem na sala'
Fui a uma reunião do Alcoólicos Anônimos. O primeiro dia foi muito difícil, só tinham homens na sala, todos mais velhos, e eu fiquei muito constrangida. No dia seguinte, voltei —não tinha opção, precisava voltar, era uma condição para continuar morando com a minha mãe— e tinham duas mulheres na sala, que foram maravilhosas comigo, me acolheram.
Aí eu fui ficando, fui me identificando com o que eles e elas diziam, estudando os 12 passos. Tive um apoio muito grande, criei vínculos de amizade. Quando estava com vontade de beber, ligava, pedia ajuda.
Tive alguns relacionamentos dentro do AA. Não é o mais recomendado, mas quando você está em recuperação não tem como se relacionar com pessoas que bebem, então as pessoas acabam se relacionando ali dentro mesmo. Tive a sorte de não recair.
Fiquei ali durante oito anos. Durante esse período, vi poucas mulheres e isso me incomodava. A proporção era coisa de duas mulheres entre 10 pessoas. Quando eu saía para beber tinha muita mulher bebendo, e eu pensava: 'Por que elas não chegam ao AA?'.
'Percebi que essa dor não era só minha e decidi criar um coletivo'
Depois desses oito anos, fui morar em Belo Horizonte, onde passei a estudar empreendedorismo social e comecei a fazer palestras só para mulheres, contando minha história, falando de superação —nessas ocasiões, claro, falava do alcoolismo e várias mulheres vinham conversar comigo, pedir ajuda para elas mesmas ou para a mãe, para uma tia, para uma irmã.
Percebi que essa dor não era só minha. Essas mulheres alcoolistas estão nas ruas sofrendo e muitas vezes não têm coragem de ir a uma reunião do AA. É mais difícil para a mulher, ainda mais em cidades pequenas, onde todo mudo sabe quem ela é, com quem é casada.
Liguei para a minha psicóloga, para duas companheiras de AA, e falei: 'Quero criar um coletivo'. Essas mulheres precisam de amor e acolhimento para entender que não são 'vagabundas' ou mães ruins, mas estão doentes.
Fomos para as redes sociais e rapidamente as seguidoras começaram a aparecer, mas logo depois veio a pandemia. Fechou tudo —inclusive muitas reuniões do AA.
Choveu mulher no nosso Instagram, surgiu uma demanda enorme. A ideia inicial era apenas ser uma ponte entre essas mulheres e o AA da região delas ou médicos especialistas em alcoolismo, mas elas começaram a pedir reuniões virtuais, grupos no WhatsApp, e o coletivo Alcoolismo Feminino foi crescendo.
'Todas nós, mulheres alcoolistas, já sofremos algum tipo de violência'
Hoje somos uma associação e fazemos cinco reuniões semanais com mulheres alcoolistas. Além disso, temos terapia em grupo para as alcoolistas e grupos de apoio para familiares.
Mais de mil mulheres já passaram pelo nosso coletivo. Todas elas são cadastradas e, a partir desses cadastros, conseguimos chegar a alguns dados bem importantes para nortear nosso trabalho: 34% delas fizeram cirurgia bariátrica, 28% são lésbicas, bissexuais ou transexuais, e mais de 80% já foram vítimas de violência física ou sexual.
Começamos a desenvolver reuniões com eixos específicos: mães, mulheres negras, vítimas de violência, lésbicas, bissexuais e transexuais. Também temos o grupo para alcoolistas bariátricas, com psicólogas e nutricionistas especialistas.
Todas nós, mulheres alcoolistas, sofremos algum tipo de violência ao longo da vida —se não física ou sexual, com certeza psicológica, moral ou patrimonial.
Mais de 80%, pelo que computamos aqui no coletivo, vêm de famílias com pai, mãe ou ambos alcoolistas, como eu. Ou seja, a gente vem repetindo um padrão de baixa autoestima, falta de amor-próprio, abandono afetivo dos pais.
E quando a gente começou com as terapias em grupo, muitas começaram a se abrir e percebemos que na maioria dos casos essa violência vem desde a infância, em forma de abuso de pai, tio ou outra pessoa próxima. E o álcool servia para anestesiar todas essas dores.
Nosso foco não é falar da doença, mas ajudar essas mulheres a enxergar uma solução, entender que existe felicidade numa vida sem bebida."
Graziella Santoro, 52 anos, publicitária, de Belo Horizonte (MG)
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