Burnout afetivo: 'Me senti esgotada ao tentar fazer a relação funcionar'
Em "Copo Vazio", livro de Natalia Timerman lançado no início desse ano pela editora Todavia, Mirela e Pedro se conhecem por aplicativo de encontros e vivem uma paixão por alguns meses, até o homem sumir sem dar satisfações, deixando a mulher num descontrole sufocante que dá para sentir fora das páginas. Depois de anos em terapia, a personagem chega a uma conclusão certeira sobre relacionamentos modernos: "O grande legado do Pedro na minha vida, no fim das contas, foi me dar de presente a certeza de que qualquer pessoa pode ir embora a qualquer momento".
Todo mundo tem o direito de romper relações, mas sob o contexto em que vivemos, onde tudo se resolve por aplicativo de mensagem, os contatos estão se evaporando mais rapidamente, solidificando uma verdadeira estafa sentimental.
Segundo a Organização Mundial de Saúde, a síndrome de burnout é um distúrbio psíquico caracterizado pelo estado de tensão emocional, exaustão extrema e esgotamento provocados por condições de trabalho desgastantes. As relações amorosas modernas cada vez mais rápidas e frustradas estão fazendo com que alguns especialistas emprestem o termo para falar de relacionamentos: as pessoas estariam sofrendo de burnout afetivo ou "dating burnout".
Uma pesquisa de 2017 encomendada pelo site de relacionamentos Match.com mostra como esse cenário afeta, em especial, as mulheres: 54% das mulheres mostraram que se sentiam exaustas com esses encontros modernos.
Para investigar como e por que o esgotamento atinge as mulheres brasileiras de forma mais massiva, Universa foi a fundo no assunto e publica, esta semana, 5 reportagens sobre o tema.
Passamos por carreira, trabalho, relacionamentos, maternidade e ainda uma entrevista com a autora americana Anne Helen Petersen que, após uma experiência pessoal, escreveu o best seller "Não aguento mais não aguentar mais: Como os Millennials se tornaram a geração do burnout" (ed. HarperCollins Brasil). O sucesso de vendas da publicação confirma o que especialistas ouvidos dizem: a sensação de esgotamento pode até não ser novidade, mas a preocupação em entender suas causas e soluções é um tema urgente.
"Tive crise de ansiedade por investir demais para a relação funcionar"
A psicóloga e sexóloga Carolina do Amaral e Silva, de 38 anos, está na lista de mulheres que sentiu esgotamento mental após diversas frustrações amorosas. Passou por isso três vezes. Ainda mais jovem, aos 22, depois, durante o casamento de 8 anos e agora, em 2020, já divorciada e em busca de uma nova parceria.
Há 16 anos, quando ainda nem se falava no termo ghosting para resumir quem deixa um relacionamento sem explicações, Carolina passou semanas ficando com uma pessoa, com direito a horas de conversas pelo telefone fixo. Até que numa sexta-feira à noite ele comunicou que estava indo para sua casa dormir. Mas nunca chegou.
"Eu ligava e ele não atendia. Apareceu meses depois e não falou nada sobre aquilo. Comecei minha terapia ali, porque eu não tinha estrutura psicológica nenhuma para lidar com uma situação como aquela. Já tinha uma autoestima superabalada, problemas de aceitação, e comecei a desenvolver crises de ansiedade", relata.
Depois disso, durante o casamento de 8 anos com outra pessoa, Carolina diz que sofreu esgotamento emocional e teve uma nova crise por, nas suas palavras, sentir que somente ela investia no relacionamento: "Passei pela ideia de inadequação, pensava no que não estava fazendo de suficiente para dar certo. Tive crise de ansiedade porque eu fazia todo um investimento para essa relação funcionar, e me senti esgotada."
Já separada, em 2020, Carolina conheceu uma pessoa por aplicativo de encontros e, quando se viram pessoalmente, tinha certeza de que viveria uma grande história de amor. O homem chegou a perguntar se ela queria se tornar mãe. Mas depois disso, sumiu.
Dessa vez, ela não se impactou tanto com o ghosting. E diz que essas histórias de interrupções abruptas se repetem cada vez mais em seu consultório, principalmente entre mulheres. Segundo ela, os homens estão fugindo de sua responsabilidade afetiva por não saberem lidar com o fato de as parceiras estarem mais independentes. "Escuto muito isso: que os homens realmente sentem medo desse espaço todo que a mulher está tomando e eles não sabe lidar com isso, estão perdidos".
Aprendi que a gente tem que ir vivendo as experiências, produzindo histórias para contar. Precisamos desconstruir um pouco a ideia de ter resultados positivos num primeiro encontro Carolina do Amaral e Silva
A expectativa é mãe da frustração
Com ajuda de terapia, a pesquisadora Victoria Maia, de Fortaleza, também diz estar aprendendo exatamente isso: não criar expectativas. Aos 28 anos e sem nunca ter entrado num relacionamento sério, conta que chegou a ter crises de ansiedade, achando que o erro estava em si por frequentemente sofrer ghosting de pessoas que mantinha conversas pelo aplicativo. Mais segura de si, avalia que falta responsabilidade afetiva nos outros:
"Se não quer mais falar ou encontrar, diga. Parece que as pessoas acham que podem ficar cada dia com uma, e a gente entra em relações gasosas. Nem líquidas são mais", opina, antes de finalizar:
"Mas ainda vale a pena conhecer gente. Se quero construir um relacionamento, existem pessoas que querem também. Só não sei onde elas habitam, o que comem, como vivem."
"Falta de reciprocidade machuca mais do que não encontrar alguém"
A percepção de Victoria sobre essa ausência afetiva é compartilhada pela psicóloga clínica, terapeuta sexual e colunista de Universa Ana Canosa. Na sua avaliação, a falta da troca de amorosidade nos relacionamentos é que tem machucado mais.
"As pessoas têm medo de se comprometer e esperam grandes condições para isso. Também têm pouca responsabilidade afetiva, são pouco amorosas em relação ao outro. Então, o grande problema do burnout afetivo, para mim, é a falta de reciprocidade amorosa. Isso machuca mais do que não ter encontrado alguém, e pode acontecer tanto em relações de compromisso como nos encontros casuais", afirma.
A quantidade de promessa de encontros afetivos gerada pelos aplicativos de relacionamento também trazem um potencial de um ghosting enorme, aponta a psicóloga Marina Vasconcellos, terapeuta de casais e famílias pela UNIFESP (Universidade Federal de São Paulo).
"Os aplicativos realmente funcionaram para unir pessoas, principalmente durante a pandemia. O que é muito complicado nele é que você começa a falar com uma pessoa e, de repente, ela te deixa no vazio. Os homens fazem muito isso, somem. Se você é uma pessoa que não está preparada para encarar isso, passa por um sofrimento atroz e isso vai criando um desgaste emocional", diz a especialista, voluntária no grupo Amor e Ciúme Patológico, no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.
"A falta de compromisso também é nossa"
A neurocientista Claudia Feitosa-Santana sugere que sejamos mais honestos primeiramente com nossos sentimentos antes de dar início a um relacionamento, seja por aplicativo ou olho no olho:
"A mesma pessoa que reclama do sumiço de alguém no aplicativo está conversando com cinco, dez pessoas. E se escolhe uma, ela desaparece das outras. E se fica falando com as dez, como vai saber o que está sentindo? No fundo, somos incoerentes. A falta de compromisso não é só do outro. É nossa também."
Ela prefere não usar aqui a expressão "burnout afetivo", já que o termo é usado em diagnóstico de pessoas que têm estresse por causa do trabalho. E questiona: "No campo amoroso, as pessoas estão exaustas afetivamente ou deprimidas?"
Essa busca por tentar entender o que está sentindo é exatamente o tema do livro de Claudia, "Eu controlo como me sinto". "O fato de a gente não aprender a diferenciar emoção e sentimento, nem a avaliar o que estamos sentindo é o primeiro passo a caminhar para a síndrome do burnout", afirma Claudia, que é mestre em psicologia experimental e doutora em neurociência e comportamento pela USP.
Homens precisam debater mais sua masculinidade
Em entrevista recente a Universa sobre o livro "Copo Vazio", a autora Natalia, que também é psiquiatra e psicoterapeuta, falou da recorrência de pacientes que estão lutando contra o abandono e afirmou que são, como sua personagem Mirela, em sua maioria mulheres. Na sua avaliação, os homens estão um pouco perdidos e ainda têm muita dificuldade para falar sobre relacionamentos.
O professor Renato Noguera, doutor em Filosofia pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), concorda. E, assim como boa parte das mulheres estão apostando no caminho do autoconhecimento para ter melhores experiências em seus relacionamentos afetivos, acredita que os homens precisam participar mais de debates sobre masculinidade.
Na sua avaliação, é preciso ampliar o repertório cultural desde cedo, nas escolas, sair um pouco da cultura greco-romana, que é uma das nossas bases e onde a mulher é quase propriedade do marido, e mostrar por exemplo a cultura do Congo, por exemplo, cuja linhagem passava pela mulher:
"Na etnia Guarani, por exemplo, o garoto passa por um ritual quando começa a engrossar a voz: não basta só ser um guerreiro caçador, mas precisa ter uma relação com seu próprio corpo, ser capaz de cuidar da família e dele mesmo. Já os Umbus, que são muito guerreiros, têm que aprender a chorar para casar com uma mulher". Na visão de Renato, ao quebrar estereótipos de masculinidade, se formam homens mais capazes de lidar com sentimentos. "O processo de produção de masculinidade tem que passar por rituais para revisitar o que é ser homem", afirma.
"Não é ruim ter um relacionamento que te alimente, mas para que isso seja legal não pode ter dependência emocional nem objetificação. E isso é um desafio tremendo", conclui.
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