Topo

É lei, mas eles não pagam: por que prisão por pensão alimentícia é comum?

Quando a pensão alimentícia não é paga, pode haver penhora de bens, bloqueio de contas e prisão coercitiva - Aleksandra Iarosh/Getty Images/iStockphoto
Quando a pensão alimentícia não é paga, pode haver penhora de bens, bloqueio de contas e prisão coercitiva Imagem: Aleksandra Iarosh/Getty Images/iStockphoto

Nathália Geraldo

De Universa

09/12/2021 04h00

A consultora de marketing Gabriela* e o ex-marido já eram pais de uma menina, hoje com 7 anos. No início de 2019, ela engravidou novamente dele. Antes de a bebê nascer, eles se separaram e, com um advogado, Gabriela deu entrada no pedido de pensão alimentícia. Foi aí que começou seu "filme de terror", conta a Universa.

"Estava com uma recém-nascida e mais uma filha, e ele se safando para não pagar pensão. Por um ano, pagava o quanto queria, até que a Justiça emitiu outra intimação para ele. Eu tinha a confiança de que pensão era a única coisa que funcionava no Brasil, mas o processo teve muita burocracia", afirma Gabriela.

A consultora de marketing, que não tinha renda própria durante o casamento, relata que viu os valores estabelecidos pelo juiz acumularem por um ano e três meses — chegando a R$ 400 mil. Não era possível fazer o bloqueio de bens do ex-parceiro, que é empresário, porque houve tempo hábil para que ele tirasse bens do próprio nome. O caso foi resolvido com a entrada de outra advogada em sua defesa e o estabelecimento de um acordo entre as partes.

Apesar de o Conselho Nacional de Justiça, o CNJ, não ter levantamento de quantas prisões acontecem por não se pagar pensão alimentícia no Brasil, quem trabalha na área jurídica com questões de família analisa que a lei não é cumprida como se espera. É o que diz a defensora pública Cláudia Tannuri, que também é membro do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado de São Paulo (Nudem).

"A percepção é de que 70% dos processos que passam por um defensor são com demanda de pensão alimentícia". Segundo ela, prevalecem casos em que a mãe tem a guarda dos filhos e entra com a ação contra o pai deles.

"Atuo na área de família desde 2007. Nas audiências, o homem age como se não fosse obrigação dele, como se a mulher pedisse só para atormentar. Vejo processos que se arrastam desde o nascimento dos filhos até eles atingirem a maioridade. Além disso, também se percebe um recorte de gênero, já que as mães, além das próprias crianças e dos adolescentes, são as mais afetadas."

É comum que até mesmo famosos não paguem pensão, apesar de ostentarem publicamente vidas de alto padrão financeiro. Recentemente, o ator André Gonçalves foi colocado em prisão domiciliar por não pagar pensão. Até mesmo um homem ganhador da Mega-Sena foi preso pelo mesmo motivo. Afinal, se está na lei, como eles conseguem continuar devendo e por que ainda se prende por pensão alimentícia?

Pensão alimentícia leva à prisão

O ex-marido de Gabriela não foi para a prisão para cumprir o que é previsto por lei. Mas esse é um recurso bastante utilizado quando o devedor nunca pagou ou deixa de pagar a pensão aos filhos, sejam crianças e adolescentes. A prisão é do tipo coercitiva, ou seja, se a pessoa paga, ela é solta. E está prevista na Constituição e no Código Civil. "É a única prisão por dívida prevista nele. Porque há uma colisão de interesses: a liberdade do devedor e a sobrevivência da criança", aponta Cláudia.

Em sua experiência na defesa de mulheres que fazem o pedido de pensão, relata, há forte impacto da ausência do princípio de paternidade responsável entre os pais. Ou seja, homens têm filhos, se separam das parceiras e não querem se comprometer com os gastos decorrentes da criação dos pequenos. "Os que pagam dizem que as mulheres são aproveitadoras. Mesmo que seja R$ 200, eles dizem que as mulheres usarão para comprar coisas para elas. Nas audiências, falam como se fosse um favor, e não a obrigação deles".

A relação entre o ex-casal também se espelha no não cumprimento da lei, explica a advogada Tatiana Moreira Naumann, que está acostumada a atuar no direito de família. "Todos os dias vejo que o fato de a pessoa ter uma ação contra outra é uma forma de manterem o vínculo. Há os que preferem continuar brigando a dissolver a situação. Nesses casos, é uma questão que vai além do processo."

Por causa da pandemia, até o início de novembro, o CNJ recomendava aos magistrados que os devedores não fossem enviados ao sistema prisional e ficassem apenas em prisão domiciliar. O Conselho voltou atrás na decisão, pois o Superior Tribunal de Justiça (STJ) observou que a prática causou aumento da inadimplência.

Funciona em 100% dos casos?

divorcio - zimmytws/Getty Images/iStockphoto - zimmytws/Getty Images/iStockphoto
De acordo com as juristas, a prisão pode ser decretada por no mínimo 30 dias e, no máximo, 90 dias
Imagem: zimmytws/Getty Images/iStockphoto

A prisão é de no mínimo 30 dias e, no máximo, 90 dias, acontece após três meses de inadimplência. Segundo as juristas, é comum que o homem seja preso. O que não significa que o devedor honrará os pagamentos que foram fixados pelo magistrado em audiência. A situação pode se arrastar por anos.

"Primeiro, a pessoa ingressa com pedido para que ele fixe a pensão. Depois, há o cumprimento da sentença, quando ela será exigida. Se não for paga, o credor, que geralmente é a mãe, terá que procurar novamente o Poder Judiciário para obrigar o pai a cumprir o que foi executado", detalha a defensora pública.

Na opinião da advogada Tatiana, mesmo com a restrição de liberdade sendo um instrumento de coerção, alguns devedores preferem continuar em débito.

É um mito que essa é a única coisa que funciona no Judiciário porque às vezes se chega a um grau de irracionalidade que a pessoa prefere ir presa do que depositar o dinheiro para os filhos.

Como se aplica a lei

A legislação regulamenta que o pedido da pensão deve ser feito por aquele que não tem condições suficientes para arcar com as despesas do menor de idade ou do adolescente e cumprida quando a outra parte consegue prover parte dos recursos. Não há um valor fixo em lei, mas o pedido atende a alguns critérios: possibilidade, necessidade e proporcionalidade entre o ex-casal.

"Se há uma renda discrepante em relação a outra pessoa, o homem pagará proporcionalmente ao que ele ganha", diz Tatiana. "Um famoso geralmente tem um padrão de vida alto. Por isso que vemos dívidas muito altas: vira uma bola de neve."

A defesa, seja um advogado particular ou da Defensoria Pública, pede à Justiça aquilo que se considera necessidades presumidas da criança, que não tem como prover seu próprio sustento. "Não precisa escrever na ação que um bebê precisa comer, se vestir. Mas se a criança tem uma necessidade de saúde específica, por exemplo, anexamos a documentação do medicamento", explica Cláudia. A obrigação, como se imagina, não termina quando o filho completa 18 anos. "Na prática, o entendimento é que deve ir até quando a pessoa completar os estudos, geralmente aos 24 anos. Se o pai quiser parar de pagar antes disso, precisa comprovar que o filho tem condições de se manter."

Mecanismos para a pensão ser debitada

Se o pai trabalha com carteira assinada, é possível que se defina a destinação de 30% do valor (a depender da definição do juiz) do holerite para a pensão dos filhos. Pode-se, ainda, realizar o "pagamento in natura", quando uma das partes paga diretamente despesas como a escola, o curso de inglês ou a alimentação do filho.

No descumprimento do estabelecido, há penhora de bens, bloqueio de contas e prisão coercitiva. No entendimento de alguns juízes, também é válido bloquear a CNH, o passaporte e o cartão de crédito do devedor, além de inscrever o nome dele no SPC e na Serasa.

Atenção às brechas

Nas situações em que o homem tem dinheiro e não quer pagar a dívida, é comum que se usem de artifícios como colocar suas empresas no nome de terceiros ou fraudar o imposto de renda. Com a comprovação de que ele ainda tem uma vida financeira próspera, com fotos de redes sociais em restaurantes ou eventos caros, a mulher pode entrar com uma ação de revisão de valores.

Já para os devedores que têm menos condições financeiras, que perderam o emprego ou a capacidade de trabalho, é possível a indicação de outra pessoa como subsidiária para o pagamento, como os avós, e a definição de acordos entre as partes.

*O nome da entrevistada foi trocado a pedido dela para preservar a privacidade