Denúncias de abuso sexual revelam submundo das terapias psicodélicas
O admirável mundo novo das terapias psicodélicas anda meio estremecido. Denúncias de abuso sexual contra terapeutas famosos nos Estados Unidos estão levantando dúvidas sobre a segurança de um circuito terapêutico que flerta com a ilegalidade. São oferecidos atendimentos com substâncias alucinógenas como MDMA (também conhecido como ecstasy), psilocibina e ayahuasca. Atualmente esses tratamentos são permitidos apenas em pesquisas clínicas.
O imbróglio revela uma espécie de submundo das terapias psicodélicas. "Há muitos terapeutas nos Estados Unidos atendendo clientes com alucinógenos de forma ilegal, de maneira clandestina", afirmou a Universa o terapeuta Will Hall, que relatou, em artigo publicado na internet em setembro, ter sido abusado sexualmente durante sessões com MDMA.
Ele acredita que o fato de os psicodélicos serem descriminalizados para uso pessoal em algumas cidades americanas esteja favorecendo a expansão desses centros clandestinos de tratamentos alternativos.
As acusações de Hall apontam para dois nomes badalados no meio: Aharon Grossbard e Françoise Bourzat. O casal há décadas oferece tratamentos combinando alucinógenos com psicoterapia e dá treinamentos para formar outros terapeutas psicodélicos.
Hall afirma ter sido tocado por Grossbard de maneiras que pareciam sexuais, mesmo depois de ter expressado desconforto com isso. Ele diz que após ter concordado em ser abraçado durante a sessão com MDMA, o terapeuta o puxou para o seu colo, envolvendo suas pernas em torno de sua cintura.
O artigo de Hall se espalhou pela rede feito rastilho de pólvora, o assunto ganhou destaque na mídia americana e outras vítimas surgiram com denúncias semelhantes. Segundo depoimentos anônimos ao site americano Inverse, era comum Grossbard dar a seus clientes do sexo masculino altas doses de psicodélicos e "tocar ritualisticamente" seus órgãos genitais nus, às vezes até inserindo o dedo em seus ânus. De acordo com os relatos, Grossbard alegava aos seus clientes que essa ação era para "limpar o chacra raiz".
Em uma das ações movidas no Tribunal Superior de São Francisco, onde os casos foram relatados, outro ex-cliente conta ter se relacionado sexualmente com Bourzat durante quatro anos.
Famosa no circuito das terapias com alucinógenos, Bourzat é autora de "Consciousness Medicine" ("Medicina da Consciência", em português, sem edição no Brasil). A publicação foi recomendada como "um importante livro sobre orientação psicodélica" pelo não menos badalado jornalista Michael Pollan, que escreveu uma das obras mais festejadas da nova onda psicodélica: "Como Mudar sua Mente" (editora Intrínseca).
"Ter medo faz parte do abuso"
"Novas acusações surgem constantemente", comenta Hall. Mas, segundo ele, a maioria prefere não recorrer à Justiça. Os processos judiciais "não funcionam, são muito difíceis", diz Hall. Muitos preferem não falar por vergonha e por temer retaliação, ameaças e a perda de amigos, prossegue o rapaz. "Ter medo faz parte do abuso."
Mesmo sem uma onda de processos, o receio de que a polêmica possa contaminar o ambiente positivo em torno das aprovações das terapias com MDMA e psilocibina está preocupando a elite da ciência psicodélica nos Estados Unidos.
O escândalo respingou na Maps (sigla em inglês para Associação Multidisciplinar para Estudos Psicodélicos). A ONG à frente da pesquisa mais avançada com alucinógenos apoiou um centro terapêutico fundado pelo casal Grossbard e Bourzat, o Center for Consciousness Medicine.
Para piorar, o artigo de Hall também tirou da gaveta outra denúncia, de 2015, de Meaghan Buisson, que participou de um ensaio clínico com MDMA, patrocinado pela Maps. Ela afirma que o terapeuta Richard Yensen teria abusado sexualmente dela.
O estudo com MDMA do Maps para tratamento de TEPT (Transtorno de Estresse Pós-Traumático) está atualmente na fase 3 e a estimativa é de que receba aprovação da agência FDA (Food and Drug Administration, agência que regulamenta alimentos e medicamentos nos EUA) em 2023.
"Ilegalidade pode favorecer abusos"
Não é possível dimensionar o tamanho real do problema, diz Clancy Cavnar, psicóloga clínica e diretora do Instituto Chacruna em São Francisco. Mas ela cita um levantamento recente nos EUA que revela contornos alarmantes.
Segundo a pesquisa, de 9% a 12% dos profissionais de saúde mental admitiram que tiveram contato sexual com um paciente. Ou seja, não se trata de um problema exclusivo do campo psicodélico.
Mas, no caso das terapias com alucinógenos, o atual ambiente de ilegalidade pode favorecer a ocorrência de abusos, avalia Cavnar. "As pessoas que optam por atuar em um campo ilegal podem estar mais propensas a assumir riscos de todos os tipos."
Para a Maps, incidentes de violações éticas ou abuso demonstram a urgência de que os psicodélicos sejam regulamentados para uso terapêutico e descriminalizados para outros consumos.
"A proibição não impediu esses usos, simplesmente tornou secreto e estigmatizado, criando barreiras para medidas de prevenção e responsabilização quando ocorrem violações", argumenta Betty Aldworth, diretora de comunicação da Maps. A diretora reforçou ainda que a ONG, atualmente, não mantém relacionamento com nenhum dos acusados.
Em nota publicada recentemente, a Maps se posicionou sobre o caso e destacou que Grossbard e Bourzat não fazem parte mais do Center for Consciousness Medicine.
Número de casos pode ser maior
Suspeita-se que o número de casos de abuso sexual no circuito psicodélico, terapêutico e religioso, nos EUA e em outros lugares do mundo, possa ser bem maior do que se imagina. "É difícil medir essas coisas", observa a antropóloga Bia Labate, fundadora e diretora-executiva do Instituto Chacruna, que publicou o "Guia da Comunidade Ayahuasqueira para Conscientização sobre Abuso Sexual", disponível em português.
"Por vergonha e culpa, as vítimas não se apresentam. Além disso, as coisas acontecem nos porões, não se sabe quantos grupos existem, nem há onde registrar uma reclamação", explicou Labate a Universa.
A antropóloga chama atenção para o cuidado que se deve ter com as dinâmicas de poder entre psicólogos e pacientes no ambiente dos psicodélicos. "São substâncias poderosas que podem ter um grande impacto na vida das pessoas, elas podem facilmente confundir o efeito das substâncias com os 'poderes sobrenaturais' daqueles que as administram."
O jornalista Michael Pollan, citado nos polêmicos artigos de Hall, foi questionado sobre o assunto em uma entrevista concedida recentemente a Bia Labate na série em inglês "A Conversation on Plants" (Uma Conversa sobre Plantas), do Instituto Chacruna.
Pollan ressaltou que se trata de um problema que ocorre em todas as formas de terapia e concorda que uma das causas é o desequilíbrio de poder entre o terapeuta e o paciente. Porém, o jornalista disse estar preocupado com o clima de "corrida do ouro" em torno dos psicodélicos.
"O entusiasmo é tão grande que está atraindo todos os tipos de pessoas". Para ele, isso tem feito surgir empresas clandestinas onde alguns poderão se machucar com guias ou terapeutas não qualificados.
Psicodélicos e desejo sexual
Em seu artigo, Hall critica também os formulários de consentimento usados nas pesquisas do Maps com MDMA, que, segundo ele, não citam os efeitos sobre o apetite sexual.
"Os psicodélicos podem causar desejo sexual às vezes, mas nem sempre", pondera a diretora da Maps, Betty Aldworth. Ela informa ainda que o formulário foi atualizado e que a versão atual esclarece aos participantes os riscos de abertura emocional.
Embora existam relatos que associam MDMA e desejo sexual, uma coisa não está diretamente ligada à outra, acrescenta o biomédico Renato Filev, pesquisador da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e coordenador científico da Plataforma Brasileira de Políticas de Drogas.
"Para algumas pessoas, pode despertar esses efeitos, mas não é uma característica da substância, depende da dinâmica biopsicossocial do indivíduo e do contexto em que a droga está sendo usada."
Acusados negam assédio
Universa procurou Aharon Grossbard e Françoise Bourzat. Por e-mail, ambos negam as acusações. Entretanto, a terapeuta Bourzat admite já ter se envolvido sexualmente com um paciente no passado. "Foi obviamente um erro, passei anos em terapia trabalhando para resolver os impactos que minhas ações causaram."
Grossbard nega ter se envolvido em qualquer atividade sexual com Will Hall e afirma ter sido extorquido por ele. Mas reconhece que, em suas práticas terapêuticas, às vezes toca seus clientes.
"O toque pode ser uma parte importante do processo de cura", escreve Grossbard. Mas, segundo ele, "a delicadeza desses estados [sob efeito de psicodélicos] às vezes pode causar confusão, percepções distorcidas, angústia e resultar em um impacto que não era pretendido."
Não deveria existir toque de genitália em terapia
Vale destacar, conforme ressalta o pesquisador da Unifesp Renato Filev, que embora possam influenciar o desejo sexual, não se deve culpabilizar as substâncias alucinógenas por abusos. "A interação [entre paciente e terapeuta] deve ser mínima durante a experiência psicodélica, porque o processo é interno."
Outro ponto importante, sublinhado por Filev, é que embora seja possível a combinação de psicodélicos com práticas terapêuticas diversas, como massagem, acupuntura e outras, não existe toque de genitália em terapia.
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