Ela cresceu entre as uvas no interior de PE e hoje é sommelier da Chandon
Franciele Santos, 31 anos, cresceu em meio aos parreirais de Lagoa Grande, no interior de Pernambuco. "Meu pai sempre nos levava para a colheita das uvas. A gente ajudava a forrar as caixas com folhas, para acondicionar os frutos da melhor maneira. Minha mãe também sempre trabalhou com isso. Vez ou outra, levávamos o almoço para ela. Logo, estávamos sempre em meio às parreiras. Eram as uvas que pagavam a nossa alimentação e sustentavam a nossa vida", recorda a filha de um produtor rural, atual enóloga e sommelier da Chandon.
Naquela época, ela não tinha ideia de que o fruto que dá origem ao vinho guiaria seus passos profissionais. Ao longo de sua carreira, Franciele passou por vinícolas famosas, como Valduga e Miolo, atuando nas áreas de turismo e marketing, e foi instrutora de cursos antes de chegar à sua principal ocupação, como enóloga.
O sonho inicial não tinha nada a ver com vinicultura, no entanto. Franciele queria ser advogada. "Cheguei a passar no vestibular para Direito, mas como venho de família pobre e humilde, para conseguir bolsa, precisava ficar em primeiro lugar. Passei em segundo. E, sem a bolsa 100%, não tinha renda para me manter. Foi aí que decidi prestar enologia. Combinei com meu pai que seguiria no curso enquanto não conseguisse fazer a faculdade de Direito", conta.
Não precisou muito para que ela se apaixonasse pelo curso e passasse a aplicar os conhecimentos na colheita do pai. "Foi um mergulho em várias coisas que meu pai fazia. Quis ajudá-lo com informações mais técnicas. Mas meu conhecimento prático sobre uva também me ajudou bastante e eu tirava dúvidas com ele. Era uma via de mão dupla. A área de produção de vinho foi a que mais chamou a minha atenção", conta.
Apesar da dedicação e dos benefícios para os negócios da família, Franciele enfrentou momentos difíceis nos tempos de universitária. Seus pais chegaram a dizer que ela precisaria abandonar os estudos por falta de recursos. A colheita não estava rendendo da maneira que esperavam e o dinheiro era pouco. Foi aí que ela buscou alternativas: um pedido de bolsa e o apoio do avô por alguns meses permitiram dar continuidade aos planos.
Agora fascinada pelas uvas em sua forma líquida, a tal da bebida dos deuses retratada em tantas literaturas, a jovem buscou trabalho na área. "Comecei a fazer estágio em atendimento ao público, marketing, feiras e eventos. Quando concluí o curso, trabalhei com turismo relacionado ao vinho. Com todo meu tempo de carreira, as amizades que fiz e ver a reação no rosto das pessoas quando elas descobrem mais sobre o vinho, não voltaria atrás no meu caminho. Não me arrependo de ter deixado a ideia de fazer Direito", diz. E atrás de novas parreiras ela foi. Agora, no Rio Grande do Sul.
'Mas tem vinho no Nordeste?'
Como é de se esperar na carreira de qualquer mulher, além das limitações financeiras, Franciele precisou enfrentar o machismo e o preconceito em relação às suas origens. "Eu atendia um público com um poder aquisitivo bem elevado, homens de 50 a 60 anos, que faziam curso comigo, uma mulher jovem, sobre vinhos. Então eu tinha de provar o meu valor. Eram quatro horas de curso e, no final, as pessoas diziam que haviam sido surpreendidas, como se aquilo fosse um elogio."
Duvidaram da minha capacidade inúmeras vezes. Cansei de ouvir comentários como 'No Nordeste tem vinho?' ou 'Veio para o Rio Grande do Sul porque se casou com um gaúcho?
Mas ela nunca desistiu de seguir em frente por causa disso.
Em sua trajetória, passou por vinícolas famosas, como Valduga e Miolo, e atuou em diversas áreas, incluindo a de marketing. Até embaixadora ela foi. Mas, assim como para muitas pessoas, 2020 foi uma época de repensar rumos. "Estava cansada. Desde a época da faculdade fui seguindo a vida e nunca havia tirado um tempo para mim. Aproveitei alguns meses, quando tudo estava fechado, para saber se queria mesmo continuar na área de comunicação em enologia", conta.
Em novembro, ela fez uma entrevista para a Chandon, mas, por se tratar de uma multinacional, muitas etapas precisavam ser concluídas antes de a vaga ser liberada. A contratação chegou em março de 2021. Na empresa, Franciele ocupa o cargo de enóloga e sommelier, e também faz parte do Comitê de Comunicação em Enologia. Todas as informações divulgadas pelo marketing passam pelo time da especialista para garantir que estão sempre corretas. E há, claro, o atendimento ao público, em que apresenta os produtos da casa.
Inspiração
Franciele admite não perceber, em seu dia a dia, como pode ser uma inspiração para outras mulheres, apesar do retorno positivo que costuma receber. "Ainda não me dou conta do impacto que uma mulher nordestina dentro do universo dos vinhos pode ter. Recebi muitos feedbacks, de sommeliers, de mulheres que queriam ingressar no mundo do vinho, que se interessavam pelo assunto, de que estavam felizes em me ver ali. Acho que preciso deslanchar nesse sentido. Tenho um caminho para traçar. Meu maior projeto talvez seja inspirar outras mulheres", reflete. Mas não o único.
A enóloga sente que seu ponto mais forte é realmente o lado educacional. "Falar sobre vinhos, desconstruir mitos em torno da bebida e educar com informações com base científica —acredito que esse seja meu talento principal. Tem muita gente por aí falando sobre vinho, mas nem todos têm formação em enologia. Por isso, muitas informações circulam sem embasamento. Eu gosto mesmo é de falar de vinhos", diz.
E uma garrafa com o seu nome, um dia vem por aí? "Meu noivo é produtor de uva e fala que temos de produzir um vinho nosso. Acho que um dia vai sair."
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