'Faxina de dia, xadrez à noite: como cheguei ao Mundial na Polônia'
"Nasci na cidade de Macaíba (cidade da Grande Natal, no Rio Grande do Norte), sou filha de mãe solteira, que sustentou sete filhos desde cedo. Embora nossa família fosse muito pobre, minha mãe sempre fez questão de que a gente frequentasse a escola. Por não ter tido condições financeiras, só conclui o ensino médio. Hoje trabalho como diarista.
Foi minha frequência escolar que me aproximou de minha grande paixão: o xadrez. Esse amor cresce desde então e ajudou a me tornar uma enxadrista e a disputar campeonato até para fora do país. Sou vice-campeã brasileira e pude participar do Campeonato Mundial de Xadrez, realizado na Polônia no final de dezembro.
Aprendi a jogar xadrez na escola que cursei perto de onde morava. Lá, havia um projeto que oferecia aulas uma vez por semana. Quando percebeu que eu tinha jeito, meu professor me convidou para participar de um torneio. Eu fui junto com outros alunos e fiquei em segundo lugar.
Foi o começo das competições. Sempre que surgia um torneio, o professor me escalava para jogar. Meu professor, alguns colegas de turma foram minha inspiração, de certa forma. Isso porque na minha casa ninguém jogava.
Fui crescendo e fui vendo mulheres jogando, conquistando espaço. Recentemente, o tema mulheres do xadrez ganhou até mais destaque graças a série "O Gambito da Rainha", da Netflix, que mostra a luta de uma enxadrista em meio a um universo de competidores homens.
"Não tenho técnico. Treino à noite com com ajuda da minha irmã"
O amor pelo xadrez me acompanha desde os 9 anos e nunca deixei de lado mesmo sem ter muito espaço ou patrocínio. Mas como trabalho como diarista durante o dia, não me sobra muito tempo para treinar.
Passo os dias fazendo faxina e só treino à noite quando não estou tão cansada. Não tenho treinador. Minha irmã é quem me ajuda nesses treinos. E foi assim, entre uma faxina e outra e com muita força de vontade, que fui disputando as competições.
Tive também muita ajuda financeira. Depois de vencer o campeonato estadual, precisava de dinheiro para me inscrever no Campeonato Brasileiro de 2021. Tive apoio de dois patrões. Dona Ana Ligia, que é médica, me perguntou quanto seria a inscrição, e em seguida disse que pagaria para mim.
A competição brasileira aconteceu nos dias 11 e 12 de dezembro, em Natal. Disputei em duas modalidades: blitz e rápido. Saí de lá vice-campeã nas duas categorias.
"Fiz vaquinha e precisei de ajuda financeira para ir ao Mundial"
Foi após o vice-campeonato que me classifiquei para o Campeonato Mundial de Xadrez, que esse ano aconteceu em Varsóvia, entre 25 a 30 de dezembro. Novamente dona Lígia e o marido dela, seu André, me ajudaram a ver as passagens, como me deslocaria na Polônia (porque não sei falar inglês) e até me emprestaram botas e roupas de frio.
A viagem à Polônia teve um custo consideravelmente alto. Nem eu e nem a minha família tínhamos condições para arcar. Iniciei uma vaquinha junto com meus amigos, mas não fez tanto sucesso.
Mas quando uma rádio de Natal me procurou, contei a história no ar e um sócio de um hospital da cidade resolveu me ajudar e arcou com passagens e hospedagem.
Participar dessa competição foi um sonho realizado. Sempre quis pelo menos participar de um torneio tão sensacional como o mundial. Levarei a experiência para o resto da minha vida. Cada momento que tive lá. Fiquei deslumbrada.
Poder andar no tapete vermelho que os melhores do mundo também estavam. Foi maravilhoso viver isso. Magnus Carlsen e Hikaru Nakamura, que são campeões renomados no mundo. E ver de perto a russa Alexandra Kosteniuk, uma grande inspiração para mim.
Nessa competição, infelizmente não ganhei, mas espero poder conseguir um trabalho melhor para que eu possa estudar mais xadrez e me dedicar mais.
"Já passei por episódios machistas em competições"
Gostaria muito de conseguir patrocinadores e de ter mais tempo para treinar. A gente percebe que é um pouco difícil conseguir patrocínios, mas sigo tentando.
Acho que as mulheres devem ganhar mais espaço e oportunidades em todas áreas. No xadrez mesmo, já passei por episódios machistas. Às vezes, alguns jogadores nem me cumprimentam no começo ou fim da partida. Isso me machuca um pouco, mas não me impede de continuar.
Eu busco sempre me firmar e aproveitar bem cada espaço conquistado. Não podemos desistir nunca. Precisamos acreditar que tudo é possível, e que mesmo com todas dificuldades, obstáculos, faltas de oportunidades a gente consegue.
Somos fortes, basta acreditar em nós mesmas. Passarinho que tem medo de sair do ninho, não aprende a voar." *Cibele Florêncio tem 24 anos, é enxadrista vice-campeã brasileira e disputou torneio internacional na Polônia
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