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'Ponto do marido' e parto no carro: 'Sofri violência obstétrica três vezes'

Sara Souza, 32, é cabeleireira e vive no Rio de Janeiro - Arquivo pessoal
Sara Souza, 32, é cabeleireira e vive no Rio de Janeiro Imagem: Arquivo pessoal

Sara Souza, em depoimento a Mariana Gonzalez

De Universa

10/01/2022 04h00

Quando engravidei pela primeira vez, em 2007, se falava muito pouco sobre violência obstétrica e parto humanizado. Hoje, com 32 anos, já tenho mais conhecimento sobre isso.

No parto do meu primeiro filho, aos 17, recebi a episiotomia [corte entre o períneo e a vagina para facilitar a passagem da criança, cuja utilidade vem sendo questionada entre a comunidade médica], sem consentimento, mesmo tendo dilatação. Depois que meu bebê nasceu, a obstetra costurou e deu aquele 'ponto do marido' [ponto que deixaria a vagina "mais fechada", visto como desnecessário por vários especialistas].

Ela disse que estava fazendo aquilo porque eu era muito novinha e assim ia ficar mais apertado — não foi grossa nem nada, mas fez tudo isso sem que eu concordasse. Esses pontos inflamaram, chegaram a arrebentar, e eu sentia muita dor. Eles me incomodam até hoje nas relações sexuais. Quando tenho penetração, sinto fisgadas, como se estivesse me rasgando.

Já no meu quinto e último parto, há dois anos, fui dispensada pelo médico, mesmo perdendo líquido amniótico. Ele me disse que só era para voltar quando o sangue estivesse escorrendo pelas minhas pernas — menos de uma hora depois, quando estava em casa, tomando banho, a bolsa rompeu e senti a cabecinha do bebê saindo.

Meu filho acabou nascendo dentro do carro porque não deu tempo de chegar ao hospital. Deu tudo certo, ele ficou bem, mas tive minha primeira crise grave de ansiedade, problema que persiste e trato até hoje com psicólogos e psiquiatras.

Tive cinco partos e sofri violência obstétrica em três deles. Essa é uma violência que fere a gente lá dentro e deixa marcas para o resto da vida.

O nascimento é para ser um momento de alegria, que você está trazendo seu bebê para o mundo, e mistura esses sentimentos com um trauma gigante.

Acho que todas as mulheres que passaram por isso, quando se sentirem mais seguras, devem falar sobre, pois não é um caso em um milhão, acontece toda hora — muito mais com mulheres da periferia, principalmente negras. Mas acho importante que uma digital influencer diga: 'Eu passei por isso', porque abre caminho para quem não tem essa visibilidade.

'Me diziam que não podia reclamar. Cultura era de parir calada'

Na situação em que sofri violência obstétrica pela primeira vez, fui internada no último mês de gestação. A moça que estava na maca ao meu lado — naquele hospital, as pacientes ficavam na mesma sala, separadas só por um biombo — gritava muito, dizia que o bebê estava nascendo, e ninguém acudia. Ela pariu sem assistência nenhuma, ali do meu lado, sozinha. Segurou o próprio bebê, deitada. Só quando nasceu que os médicos e enfermeiros vieram correndo para limpar a examinar a criança.

Minha mãe, que é técnica em enfermagem, me disse: 'Não pode reclamar, não pode gritar. Você precisa ficar quieta para não te maltratarem'.

Minha ex-cunhada, que teve bebê pouco antes da minha primeira gravidez, também dizia isso: 'Na hora do parto, você fica quieta, não grita, se não eles vão te maltratar, te deixar lá sofrendo'. A cultura era de parir calada.

Entrei em trabalho de parto numa terça-feira de Carnaval. Saí de casa de madrugada e passei por três maternidades. Na primeira ainda não podiam me internar, porque estava muito no comecinho das contrações; na segunda, estava lotado e eu teria que esperar horas na cadeira, porque não tinha maca disponível; até que cheguei ao terceiro, onde meu bebê nasceu, sofri a episiotomia e recebi o 'ponto do marido'.

No mesmo dia em que eu pari, nasceu o bebê da moça que estava internada ao meu lado. Logo depois do meu parto, ouvi a médica gritar com ela, no biombo ao lado: 'Para de gritar. Na hora de fazer não foi bom?'.

'Roda de conversa com gestantes durante pré-natal me fez entender o que tinha sofrido'

Quando minha segunda filha nasceu, não houve problema nenhum. Pelo contrário: foi o melhor parto que eu tive. Durante o pré-natal participei de grupos de conversa que falavam sobre os direitos da mulher e sobre as escolhas que poderíamos fazer a respeito do parto.

Foi aí que eu entendi que aquele corte e todo o tratamento que eu recebi no primeiro parto eram violência obstétrica. Eu acho que a ficha foi caindo aos poucos. Me senti invadida, desrespeitada, como se fosse só mais um número para o médico e como se, quanto mais rápido ele puder fazer aquilo, melhor.

'Tive medo de ver meu bebê nascer no chão'

No meu terceiro parto — em que o bebê nasceu prematuro e faleceu dias depois, na UTI neonatal — fui bem atendida durante a internação. Mas, quando comecei a perder líquido e fui levada para a sala de parto, a médica me largou lá na sala, sozinha, sem enfermeiro nem acompanhante.

Eu já sentia as dores, além de uma cólica muito forte, e reclamava com as enfermeiras que passavam no corredor, mas demorou quatro horas para ela voltar e me examinar.

Em determinado momento, a dor aumentou, coloquei a mão e senti a cabecinha do meu filho. Empurrei de volta, fechei as pernas e comecei a gritar pedindo ajuda. Quando a enfermeira apareceu e olhou entre as minhas pernas, deu um grito: o bebê estava nascendo muito roxinho e precisava ir direto para o oxigênio, porque era um bebê muito prematuro, de 28 semanas.

Foi horrível, senti muito medo do meu bebê nascer no chão. Se isso acontecesse, ele ia morrer bem na minha frente — e eu estava sozinha, quem iria me acolher?

Tive alta no dia seguinte, mas meu bebê ficaria na UTI. Não me sentia bem para ser liberada, então perguntei se poderia ficar internada por mais alguns dias. A médica respondeu que não porque eu precisava ir para casa cuidar dos meus outros filhos.

'Pari no carro. Me senti exposta, vulnerável'

No final da minha última gestação, em 2020, comecei a perder líquido e ia quase todos os dias ao hospital. O médico que me atendeu no último dia, quando eu mostrei que estava perdendo líquido, disse, de forma muito arrogante, que aquilo era lubrificação vaginal.

Eu respondi que não, que já tinha tido outros partos, que aquilo tinha cheiro de líquido amniótico, mas ele me mandou para casa.

O médico falou: 'Quando você estiver jorrando sangue pelas pernas, pode voltar que eu te interno'. Foi muita ignorância.

Ele me fez questionar o que eu estava sentindo. Fiquei na dúvida se era líquido mesmo, se eu não estava ansiosa pelo parto. Eu sabia que não e que ele não deveria falar comigo daquele jeito, mas senti medo de revidar e voltar para ter o bebê no plantão dele, ser maltratada. Àquela altura, já entendia o que era violência obstétrica, mas fiquei insegura de tomar qualquer atitude além de ir embora.

Fui para casa, comi um biscoito e fui tomar banho — até que a bolsa rompeu dentro do banheiro, quando já dava para sentir a cabecinha do bebê saindo. O hospital ficava a 15 minutos da minha casa, mas não deu tempo de chegar, e ele acabou nascendo dentro do carro.

Foi um constrangimento enorme porque eu pari dentro do carro do meu sogro. Ele viu tudo. Eu gritava, chorava, e acabei evacuando no banco do carro. Mal conseguia olhar para o meu sogro de tanta vergonha. A família disse que estava tudo bem, que eu não tinha me preocupar com aquilo, mas não conseguia.

No hospital, pessoas que já estavam na fila de espera quando estive lá mais cedo perceberam o que aconteceu e começaram a gritar para os médicos, dizendo que eu deveria ter sido internada antes. Minha sogra entrou gritando, pedindo socorro. Me senti muito exposta, vulnerável, e vieram os primeiros picos de raiva. Tive uma crise séria de ansiedade no hospital, cheguei ao ponto de não conseguir responder meu nome.

Meu filho caçula faz dois anos neste mês e até hoje faço acompanhamento com psicólogo e psiquiatra, porque ainda tenho picos de estresse relacionados a este episódio. Já tinha algumas crises de ansiedade antes, mas não como os que tive a partir deste parto, de me tremer toda, chorar, adoecer.

'Nos partos pelo SUS, fui mais respeitada'

Tive dois ótimos partos humanizados pelo sistema público.

Na hora do nascimento, fui muito acolhida. Pude escolher parir na banheira, com a música que eu queria, com dois acompanhantes. Fui informada de tudo o tempo inteiro, não fiquei sozinha em nenhum momento e tive todo o meu plano de parto respeitado. A mesma coisa aconteceu quando tive minha outra filha.

Isso não deveria ser exceção, mas regra para todas as mulheres, em todos os seus partos.

*Sara Souza, 32 anos, cabeleireira, do Rio de Janeiro.

O que é violência obstétrica?

O termo é reconhecido pelo Ministério da Saúde desde 2019 e representa experiências vividas por mulheres durante o parto que configurem maus tratos, desrespeito e abusos à parturiente.

De acordo com o órgão, os abusos afetam os direitos das mulheres ao cuidado respeitoso, além de ameaçar o direito à vida, à saúde, à integridade física e à não discriminação.

Se você foi vítima de violência obstétrica, pode denunciar procurando a ouvidoria do hospital, em caso de rede particular, ou o SUS, se a prática ocorreu na rede pública. Além disso, é possível formalizar uma denuncia ao Ministério Público Federal, pela internet, ou registrar queixa no Disque Saúde, pelo número 136, ou no Ligue 180, que recebe denúncias de violência de gênero.