Ex no útero? O que é a reconsagração do ventre, terapia criticada na web
"É da natureza feminina limpar o útero, afinal, menstruamos todo mês e seria injusto se a única função de mentruar fosse algo biológico", diz a terapeuta holística paulistana Roberta Struzani, uma das precursoras no Brasil da "reconsagração do ventre", técnica que estimula a mulher a fazer uma "limpeza mística" do útero para eliminar "más energias" e problemas de relacionamentos passados.
De acordo com Roberta, "a menstruação descarrega o que é mais forte e pesado mês a mês; já a reconsagração limpa as memórias emocionais profundas, como traumas e sequelas". A técnica, segundo seus precursores, tem origem milenar e recentemente voltou a ser discutida depois que um meme criticando a terapia viralizou na internet.
Entre os comentários da publicação, frases como "vou cobrar aluguel do meu ex" e outras brincadeiras ironizaram a tese de que a mulher seria a única responsável por carregar os danos emocionais de um relacionamento. Ativistas feministas e psicólogos também criticaram a prática que, para eles, reforça estereótipos machistas e patriarcais.
Universa conversou com Roberta para entender mais sobre a técnica, ouviu uma mulher que passou pelo processo de "reconsagração" e bateu um papo com especialistas e críticos da terapia - classificada por muitos como charlatanismo.
Como funciona a reconsagração do ventre
A "reconsagração do ventre" é uma terapia holística praticada, principalmente, por pessoas que seguem o Sagrado Feminino, filosofia que busca reconectar mulheres "a sua essência e natureza". Para Roberta, o útero é o centro energético dos corpos femininos, já que é o orgão responsável por toda a criação humana.
Com base em teorias científicas sobre memória celular, ela defende que todas as emoções e características da mulher, inclusive as ligadas à personalidade, ficam armazenadas nas células do útero e do canal vaginal. "Guardamos na memória celular traumas e experiências que nossas antepassadas viveram. Por isso, existe uma tendência feminina a repetir padrões, já que tudo fica gravado em nosso DNA", argumenta.
Foi justamente com a intenção de quebrar padrões de relacionamentos que a carioca Maria*, de 37 anos, decidiu fazer a terapia da reconsagração do ventre. Em 2010, aos 26, sem nunca ter tido um parceiro sério, ela se inscreveu na "vivência online" oferecida por Roberta a R$ 279 - mesmo antes da pandemia, existia a opção à distância. As sessões presenciais aconteciam em uma casa, na zona norte de São Paulo. "Eu tinha históricos amorosos complicados, só me envolvia com homens que não estavam emocionalmente disponíveis para mim. Tentava de tudo para romper o ciclo, usava estratégias diferentes, fazia acompanhamento psicológico e nada... Foi quando soube da reconsagração por uma amiga e decidi encarar o processo."
A sessão dura cerca de duas horas e consiste na prática de movimentos físicos que estimulam o útero, além da entonação de mantras, cânticos, gritos e técnicas respiratórias. Maria diz que chegou a ter sintomas físicos depois da vivência, como cólica, dor de cabeça e ansia de vômito durante quatro dias.
"Ali, percebi que a técnica era verdadeira", diz a analista de RH. Ela conta, que, um mês depois que se submeteu à sessão, engatou um relacionamento sério. "Estava acostumada a um padrão de homem cafajeste, safado, com pinta de surfista. Não me interessava por nenhum outro tipo de cara, mas, depois da reconsagração, saí com o amigo de uma amiga e hoje ele é meu marido. Física e emocionalmente, ele é muito diferente das pessoas com quem me relacionava."
A terapeuta Roberta Struzani classifica como comuns os sintomas físicos vivenciados por Maria. "Ao fazer a reconsagração, nosso cérebro entende que estamos parindo", pontua. Hoje, a plataforma onde ela disponibiliza a prática soma cerca de 7 mil alunas inscritas, sendo quase 50% delas estrangeiras.
A precursora da prática explica que a reconsagração só pode ser feita por mulheres cisgênero e que a tese da memória celular só se aplica a quem tem útero. "Não há como fazer a reconsagração em homens héteros e gays, e eles me procuram. Só mulher cis e hétero pode fazer. Não é uma fraqueza feminina, mas sim por termos um útero e guardarmos tudo dentro de nós. É da nossa natureza", conclui Roberta.
É a mulher que jorra o líquido (sêmen) dentro do homem? Não, é o homem que goza na mulher. Por isso somos nós que recebemos as energias deles e nós que carregamos as memórias da outra pessoa - Roberta Struzani, terapeuta holística
'Reconsagração do ventre é uma prática machista'
Letícia Nascimento, estudante de filosofia e facilitadora de círculo de mulheres, é contrária à técnica da reconsagração do ventre. "Hoje, tenho até vergonha de ser chamada de terapeuta holística, pois muitas práticas, como a reconsagração, a constelação familiar, o thetahealing, etc, servem como mais uma maneira de oprimir e violentar as mulheres, sem nenhuma base científica para isso", alerta.
Criadora da página "Sagrado Feminino Periférico", um perfil no Instagram que divulga conteúdo sobre o tema a partir de um recorte político e social, ainda contesta: "A maior parte dos conteúdos e teorias sobre o Sagrado Feminino atual vêm das elites e isso é um problema, pois deturpa o sentido da filosofia, que deveria ser uma alternativa e oposição às religiões tradicionais e patriarcais", opina.
Para Letícia, a reconsagração é uma prática holística baseada em teorias que não têm consenso entre a comunidade científica: "A reconsagração não é o problema. Todo mundo quer encerrar um relacionamento da melhor maneira possível, e a mulher pode escolher fazer isso em um ritual. O problema é quando profissionais da área começam a responsabilizar, culpabilizar e reforçar estigmas sobre o papel da mulher na sociedade e ainda por cima lucrar com isso".
Mulheres são alvos fáceis para falsas terapias e charlatonismo, até porque estão acostumadas a serem culpabilizadas pelos erros, coisa que o machismo já faz há muito tempo - Letícia Nascimento, ativista do Sagrado Feminino
O psicólogo comportamental Bruno Farias alerta ainda para outros problemas da terapia, que pode servir de gatilho para mulheres vítimas de abuso sexual, violência doméstica ou relacionamentos abusivos. "Elas são levadas a pensar que estão sujas, carregando energias pesadas, e que precisam se limpar. É como se estivessem com o mal dentro de si", alerta.
Questionada sobre os danos emocionais que a prática pode causar a uma mulher que foi vítima de uma situação de abuso, a terapeuta Roberta Struzani responde: "A partir do momento em que ela entende que a relação sexual fica dentro dela, a pessoa que foi abusada entende que o mesmo processo acontece com a energia do abusador".
"A mulher não terá outra saída a não ser limpar o útero. Ela já sabe o quanto o acontecimento foi traumático, o que não sabe é que aquela memória fica ali. Quando toma conhecimento de que pode se livrar daquilo por meio da reconsagração, melhor para ela. Depois da situação de abuso, a vítima passa a ter nojo da vagina; inconscientemente ela sabe que ali está sujo", fala.
Repressão e controle do corpo feminino
O psicólogo Bruno Farias também enxerga na prática uma tentativa de controle do prazer feminino. "Não é de hoje que as instituições tentam controlar o corpo da mulher. Uma técnica como essa reforça o que vem há muito tempo sendo dito por pessoas moralistas, por religiões como o cristianismo, só que agora está disfarçada de misticismo."
"Você não vê terapeutas falando sobre energia peniana para os homens, mas estamos sempre encontrando terapeutas alternativos dizendo que a mulher precisa limpar o corpo por causa de relacionamentos passados" - Bruno Farias, psicólogo
Em sua defesa, Roberta diz que não é contrária à liberdade sexual feminina e enxerga a reconsagração como uma maneira de driblar a troca intensa de energia sexual que uma mulher poder ter. "Antigamente, a mulher tinha apenas um parceiro durante toda a vida. Hoje em dia não é a mesma coisa".
A terapeuta também acredita que em relações sexuais heterossexuais com o uso de camisinha, a troca energética é menor: "Se no sêmen masculino tem o esperma, que carrega até o DNA do bisavô do homem, imagina se esse parceiro não vai trazer várias cargas comportamentais dentro de si? É um líquido poderoso".
Discordando de Roberta, a ativista Letícia Nascimento acredita que os traumas e experiências não ficam guardados em nenhuma célula, tampouco em algum lugar do corpo. "Não existe um orgão que armazene essas memórias porque, na verdade, a gente vive diariamente essas violências. Falar para uma mulher que ela guarda traumas, que a ancestral sofreu abuso e por isso ela chora ao ver cenas de violência é fora da realidade. Às vezes, ela viu a própria mãe apanhando do pai e esse é o gatilho", finaliza.
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