'Sou rapper indígena criada na favela e retrato as violências que sofri'
"Comecei a cantar muito nova, por influência da minha mãe, e sempre foi uma expressão espiritual. A música se tornou uma forma de denúncia quando cheguei à adolescência, inspirada pela minha experiência de vida no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, onde moro até hoje. Sou uma indígena da favela.
No Maranhão, na cidade de Mirinzal, passei minha infância. Morava em um território não demarcado da etnia Guajajara. Fiquei lá até os 8 anos. A vida era mais natureza mesmo, com casas de palha. Por um lado foi bom. Com rio, pesca, a gente se alimentava com buriti, farinha, juçara, carambola.
Mas todo território tem suas coisas boas e ruins. Havia muito conflito com madeireiros e posseiros. Os adultos trabalhavam para as fazendas, em muitos momentos vivemos situações de escravidão, dos meus pais terem que carregar sacos de farinha em troca de comida. Escravidão rolava com muitos abusos, inclusive sexuais, com as mulheres e as meninas. Era algo que todo mundo sabia que acontecia, mas ninguém falava. E os livros de história não falam com ênfase sobre a escravidão dos indígenas.
Minha mãe, Lene Guajajara, foi trazida para o Rio para trabalhar na casa de um branco aos 14 anos. Voltou para o Maranhão e depois retornou para a cidade quando eu tinha 9 anos. Eu, meu pai e dois irmãos passamos a morar na Maré.
Foi um choque quando cheguei no Rio, foi bem complicado. Tivemos que aprender a usar roupa, sutiã, andar com sapato. Códigos de convivências aos quais não estávamos habituados.
Eu nunca tinha estudado e passei a frequentar a escola. Foi uma experiência de racismo grande. Me chamavam de mãe natureza. Como eu andava com uns cordões de sementes, me chamavam de macumbeira, e eu nem sabia o que era isso. Meninas me perseguiam, queriam cortar meu cabelo. Trabalhei como faxineira, manicure, jovem aprendiz.
Sofri muito preconceito em forma de piada e censura com relação à minha cultura. De não poder usar meus acessórios ou mesmo jenipapo, uma pintura sagrada para rituais, mesmo que faça parte de mim. O certo é uma correntinha, um brinco de pérola, e roupa social.
Não sofri violência no Maranhão, como minha mãe sofreu, mas aqui, sim. Acredito que isso estava fadado a acontecer desde o meu nascimento.
Tinha 14 anos, estava com uma vestimenta comum, considerada normal, de recepcionista. E o meu ônibus quebrou, ficou tudo parado, na minha cabeça era mais fácil caminhar. Estava escuro ali no centro. Fui violentada por três homens.
Tinha sido ensinada que não se fala sobre isso e somente quando passei a ter consciência política, anos depois, consegui colocar para fora. Sobre o estupro eu escrevi 'Revolution'. A música conta que eu estava morta, mas a deusa dentro de mim despertou. Falo isso em minha língua. Esse tipo de violência se repetiu comigo e se repete, infelizmente, na vida de muitas mulheres indígenas.
Eu digo que o rap me atravessou quando eu tinha 16 anos e tive uma banda com dois angolanos para falar da realidade do Complexo. Tocávamos no violão, não tinha beat. Só fui conhecer a batida que hoje meu som tem com amigos da favela que tinham grupos de rima. Em 2016, já tinha começado a escrever minhas músicas, mas não sabia nem como gravar.
Minha primeira composição, 'Território Ancestral', só foi lançada três anos depois. A letra fala da vivência da vivência de uma mulher indígena que vai para a cidade. Também me expresso sobre preconceitos que vivencio, o genocídio do meu povo, o espaço das mulheres indígenas na sociedade.
Hoje gravo de maneira independente e tenho meu som disponível em todas as plataformas, YouTube, Spotify. Lancei este ano, aos 28, um álbum com dez faixas e tenho dois EPs.
A maior parte das minhas melodias vem dos meus sonhos. Aprendi a escutá-los com minha mãe e a registrar depois. Ela me ensinou que o que sonhamos tem ligação profunda com a espiritualidade. São portais de aprendizado, o que recebemos dos nossos ancestrais."
Kaê Guajajara, 28 anos, rapper indígena do Rio de Janeiro (RJ)
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